Por Marcelo Carvalho-Bastos
(20.06.2025)
Gaza: um safári humano?
O título acima não é uma provocação gratuita. É uma metáfora cruel, mas necessária para descrever o que está acontecendo na Faixa de Gaza: seres humanos sendo cercados, privados de recursos e mortos, enquanto o mundo assiste — parte impotente, sem saber o que fazer; parte cúmplice, pela omissão deliberada, mesmo podendo agir. Uma caçada. Um safári humano.
A repetição da barbárie
Em 2015, os diretores Bruce Young e Nick Chevallier lançaram o documentário Blood Lions, uma denúncia da prática de canned hunting (caça enlatada) na África do Sul. Leões são criados em cativeiro desde o nascimento, separados de suas mães ainda filhotes e explorados como atrações turísticas — alimentados, acariciados, fotografados — para depois serem vendidos a caçadores estrangeiros e abatidos em cercados, sem a menor chance de fuga. É uma morte anunciada, pré-programada e lucrativa.
Assisti a esse documentário com dificuldade. Não consegui vê-lo de uma só vez. Nem em duas. Mas é esse o poder do cinema documental: mostrar a realidade, mesmo que por representações, com um impacto visceral. A dor revelada não pode ser desvista.
Hoje, algo semelhante ocorre diante de nossos olhos — mas com humanos. Palestinos, confinados na Faixa de Gaza, lutam desesperadamente contra a fome, o colapso dos sistemas de saúde e os bombardeios constantes. Muitos morrem tentando obter comida para seus filhos. E, enquanto isso, a distribuição de ajuda humanitária é controlada pelos Estados Unidos, que substituíram agências da ONU em meio ao colapso da estrutura civil. O que vemos é a conversão da tragédia em espetáculo bárbaro: a transmissão global de uma caça humana, sem fuga possível.
É a versão humana, sombria e real, do que Blood Lions revelou com ferocidade: vidas confinadas, transformadas em alvos — mortos à vista de todos, e ainda assim, ignorados por muitos.
Uma terra desejada, uma história controlada
A Faixa de Gaza não é apenas uma zona de guerra. É uma terra desejada — por interesses geopolíticos e econômicos. Donald Trump chegou a compartilhar um vídeo que mostrava Gaza transformada em um “resort” de luxo, como se pudesse haver um “futuro glorioso” sem a população local. O que se delineia não é um projeto de reconstrução, mas sim de recolonização — a substituição de um povo inteiro por interesses externos.
Enquanto isso, Israel e EUA ampliam o foco, voltando-se agora contra o Irã sob o pretexto de conter a proliferação nuclear. A mensagem é clara: “apenas nós podemos possuir armas nucleares na região”. Trata-se de controle narrativo, político e militar — um esforço para manter o poder unipolar na região mais instável do planeta.
A banalidade do mal e o olhar do abismo
Hannah Arendt já advertia sobre a banalidade do mal — o momento em que o horror se torna rotina e a violência se torna administrável, mesmo aceitável, por burocracias e espectadores distantes. Estamos nesse ponto. E, como diria Nietzsche:
“Se você olhar por muito tempo para o abismo, o abismo olhará de volta para você.”
O perigo não é apenas o que está acontecendo em Gaza. O perigo é o que está acontecendo conosco enquanto assistimos.
A voz do leão, a voz dos oprimidos
Um provérbio africano diz:
“Até que a voz do leão seja ouvida, a história será escrita para glorificar o caçador.”
A história que se conta hoje silencia os oprimidos. Se não ouvirmos a voz dos que estão sendo caçados — dos que estão sendo destruídos sem chance de defesa —, corremos o risco de perpetuar essa narrativa brutal. Gaza não é apenas um campo de batalha. É uma jaula — e o mundo, sua arquibancada silenciosa.
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