CARACTERÍSTICAS DO CONTO

-Segundo Cortázar (Texto de Andrey Kaminski)

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Júlio Cortázar, renomado escritor de naturalidade argentina, mas que passou boa parte da vida na França, tinha uma visão única sobre a escrita de contos. Segundo ele, tanto o conto quanto o poema surgem de um estranhamento repentino, uma mudança que altera o estado ‘normal’ da consciência.

Cortázar descreveu o conto como uma “síntese implacável de uma certa condição humana” e até mesmo um “símbolo ardente de uma ordem social ou histórica”. Ele também discutiu outros aspectos importantes do conto, tais como:

Narrativa de um evento: nesta definição, embora se pressuponha a narração de uma circunstância verdadeira, não há critério para determinar se a narrativa é baseada em um evento real ou não. A autenticidade ou plausibilidade do texto literário é questionável, pois o uso de recursos literários em si já é um precedente para uma invenção.

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Significado: Assim como uma fotografia, o conto “recorta um fragmento da realidade”. Portanto, deve ser “significativo”, capaz de projetar a inteligência e a sensibilidade do leitor além da história narrada.

Tensão e intensidade: O conto parte da noção de limite, principalmente do limite físico. Na França, por exemplo, quando um conto ultrapassa vinte páginas, já é chamado de nouvelle, como exposto por Cortázar. O conto deve conter e compactar as situações, pois os desenvolvimentos narrativos são mais adequados para a novela e o romance.

Capacidade de se desprender do autor: O conto deve ser independente do escritor enquanto “demiurgo”. O leitor deve ter a sensação de que está lendo algo que nasceu por si só, em si mesmo e até de si mesmo, com a mediação, mas nunca com a presença manifesta do demiurgo.

A teoria do conto de Cortázar parece estabelecer as coordenadas principais do gênero, pelo menos como o conhecemos desde o século 19. Apesar de sua definição de conto ser um tanto imprecisa, o que é próprio da teoria do conto ainda hoje, Cortázar busca estabelecer comparações entre conto e outras formas de expressão artística para tentar elucidar a si mesmo, a outros contistas e a estudiosos do conto, o que seria de fato um conto e quais as particularidades do gênero. Para o crítico argentino, uma forma para entender o conto é estabelecer uma analogia com o romance, o cinema e a fotografia. O romance, por apresentar uma ordem aberta e sem limites, além de ser uma narrativa cujo olhar do autor pode ser mais abrangente haja vista a maior extensão do gênero, assemelha-se ao cinema: ambas as produções permitem uma visão mais ampla dos fatos que contam e das cenas que produzem. Já o conto, por partir de um limite físico, aproxima-se da fotografia, que pressupõe uma limitação prévia devido ao espaço reduzido que a câmera pode abranger e pelo modo com que o fotógrafo usa essa limitação. A restrição de espaço, contudo, não pode ser compreendida como uma redução de complexidade de apresentação de um fato ou de exploração estética na narrativa curta e na fotografia.

ATRIBUINDO AS CARACTERÍSTICAS DO CONTO, SEGUNDO CORTÁZAR:

“Bichos”, uma coletânea de contos de Miguel Torga, retrata a vida rural e campestre, repleta de simbolismos. A obra aborda a relação entre o homem, a natureza e os animais através de 14 histórias, cada uma revelando aspectos da vida cotidiana, dificuldades e prazeres da vida no campo.

NERO

A primeira história, “Nero”, conta a história de um cão perdigueiro que enfrenta seu último suspiro de vida. Nero reflete sobre seus 8 anos de vida, lembrando com emoção seus dias de caça e a proximidade com seu dono. No final de sua vida, Nero se pergunta se será lembrado e se fará falta. Quando vê sua dona chorando, ele parte feliz, sentindo-se amado até o fim. Podemos pensar nesse início do conto na primeira característica identificada na obra de Cortázar, a narrativa de um evento, a morte de um cão.

A obra de Torga é uma metáfora profunda que liga a vida e a morte por meio da experiência de Nero. Através de suas histórias, Torga humaniza os animais, atribuindo-lhes reflexões e pensamentos tipicamente humanos. A linguagem simples e cuidada de Torga, transporta o leitor para cenários pitorescos do campo, criando uma experiência de leitura envolvente e emocionalmente carregada. Neste segundo momento, é possível relacionarmos com a característica “significado”, pois, de fato é indiscutível a presença de elementos que fazem deste, um conto além da sequência narrada, trazendo muitas reflexões aos leitores. E, consequentemente, num ponto de vista particular, é indissociável pensar no significado de um conto, sem pensar na tensão e intensidade, esses dois elementos estão quase sempre entrelaçados nos contos, um reforça o outro.

VICENTE

O conto “Vicente”, de Miguel Torga, é uma história sobre um corvo que desafia Deus e busca a liberdade. A narrativa se passa na Arca de Noé, onde Vicente e outros animais foram escolhidos para serem salvos do dilúvio. Vicente, no entanto, é retratado como um desafiador que não aceita a autoridade de Deus e foge da Arca. Nesse ponto é possível notar a presença da narração de um evento, neste caso o dilúvio, narrado na bíblia cristã. Ser ou não a narração de um evento real, segundo Cortázar, não mais ou menos interessante, já que é intrínseco do texto literário, mas de certo que é possível considerar esse ponto do conto como sendo o acontecimento de um evento.

A história é uma luta entre a criatura e o Criador, com Vicente representando a criação e a luta pela liberdade. Ele questiona se fará falta quando morrer e se as pessoas sentirão sua falta. No final, Vicente percebe que sua luta pela liberdade não foi em vão e que ele será lembrado mesmo após sua morte. Se tratando de um assunto caro aos estudiosos da religiosidade, esse ponto é naturalmente intenso, porém, não somente por este fato, mas pela maneira como Torga constrói brilhantemente a narrativa, faz com que todo o texto seja repleto de intensidade e tensão.

Para falar do significado neste conto, é preciso que saibamos lê-lo com atenção aos detalhes e compreender os juízos de valores expressos por Torga. O conto é uma metáfora poderosa sobre a vida e a morte, a liberdade e a submissão. Através da história de Vicente, Torga explora questões universais e oferece uma perspectiva acerca da condição humana.

MADALENA

 O conto “Madalena”, de Miguel Torga, segue a jornada de Madalena de Roalde a Ordonho. A história inclui personagens como Armindo, o avô de Madalena, Ludovina, e o filho de Madalena que nasceu morto. Temas notadamente bastante carregados de intensidade e tensão.

O conto é discorre por meio da narrativa heterodiegética que conhece as ações, pensamentos e emoções das personagens. A história é uma luta entre a criatura e o Criador, com Madalena representando a criação e a luta pela liberdade.

Duas questões principais surgem na análise da narrativa: por que uma mulher está entre os “bichos” de Torga e por que o nome Madalena, associado à figura bíblica, foi escolhido. A história sugere que Madalena e outras personagens humanas na coletânea são semelhantes aos “bichos” em suas atitudes e experiências. Podemos definir esse ponto como sendo o “significado”, já que, valores e ideologias sociais estão interpelando a narrativa.

Professor Andrey Kaminski

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