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terça-feira, 23 de abril de 2024

Yuri Pequeno e o Uber Bom Humor

Yuri Pequeno não estudou e nunca teve profissão. Queria ser humorista, mas conseguiu apenas bicos de auxiliar de coveiro, porteiro de inferninho, iFood a pé e anotador de jogo do bicho. Por ser ingênuo, esse último emprego lhe rendeu passagens na polícia e alguns meses na cadeia.

Na cela superlotada, Yuri contava piadas, fazia imitações e narrava partidas de futebol fictícias com jogadas e gols hilários que agradavam Bruto, apelido em homenagem a um dos Irmãos Metralha. Mentor da Máfia das Loterias e golpes engenhosos, o líder da cela Bruno ficou amigo de Yuri, o que o protegeu do assédio carcerário. Todos se divertiam com as anedotas e ele se tornou locutor oficial dos jogos de futebol do presídio e do show de talentos. 

Do nada, Bruto foi contemplado com Indulto Presidencial e deixou o cárcere. Antes de sair, deu 3 conselhos a Yuri: nunca confie em ninguém, nunca abra o bico e nunca traia os companheiros. Pediu que o procurasse em Planaltina, cidade satélite de Brasília, assim que fosse liberado. Em 4 meses Yuri estava na cidade e o ex-colega de cela lhe deu um Fiat Marea em bom estado, lugar para dormir e um salário. Em troca, teria apenas de fazer umas entregas diárias e depois podia usar o carro para lazer ou ganhar dinheiro com o transporte por aplicativo.

Yuri tornou-se motorista do Uber e nas horas de folga praticava narração e anedotas, até que um dia transportou uma famosa humorista da TV que lhe deu dicas sobre Comédia Stand-up. Ele comprou livros de piadas, fez cursos on line e passou a praticar com os passageiros fazendo apresentações não solicitadas. Alguns se aborreciam, outros não davam a mínima, mas muitos curtiam e até gargalhavam, o que rendia boas avaliações no aplicativo e ótimas gorjetas.

Yuri não tem filtro, nem é politicamente correto. Conta piada de rabinos para judeus, de português para donos da padaria, de coroinha para padres, mas não diz palavrões quando transporta idosas e crianças.

  • Você é um caso de Inteligência Artificial – disse à uma passageira.
  • Como assim?
  • É loira com cabelos tingidos de preto. Isso se chama Inteligência artificial!
  • KKK. Muito boa essa! Adorei.
  • Madre, a senhora sabe onde o padre sente mais frio?
  • Nem faço ideia.
  • Nu Convento. Nu – com – vento. KKK.
  • Bom trocadilho – disse a religiosa.

Uma jornalista gostou da performance, gravou o “show” e publicou longa reportagem em sua revista. Um repórter de rádio leu a matéria e solicitou seus serviços. Enquanto circulavam por Brasília, ele transmitiu o show ao vivo para um programa vespertino. Delírio total na audiência. Combinaram repetir o quadro Uber Bom Humor todas as sextas-feiras. O sonho de Yuri estava se tornando realidade.

A procura pelo Marea do Uber Bom Humor cresceu e os clientes pediam o telefone de Yuri para solicitar serviços e indicar aos amigos. Eva Gaba, irmã de Bruto, era cliente constante e sempre pedia para ele contar piadas sujas. Yuri não ficava mais de dez minutos sem passageiro, mas começou a vacilar nas entregas, sempre em becos escuros, casas luxuosas, estacionamentos e lugares ermos. Quando uma grande caixa se abriu, ele viu armas, maços de dólares e “tijolos” embrulhados em papelão e plástico. Mandou mensagem para Bruto dizendo que ia parar com as entregas, dedicar-se apenas aos shows e talvez fosse embora da cidade. 

No dia seguinte, Yuri atendeu chamado para um trajeto longo, da Companhia de Saneamento até a Represa Santa Maria, no Parque Nacional. Os passageiros eram dois homens vestindo ternos pretos baratos, barbudos e sisudos. Para quebrar o gelo, Yuri contou várias piadas de barbudos, políticos, assessores e seguranças. Ninguém riu e um deles disse:

  • Muitos intelectuais são barbudos, sabia?
  • Se barba fosse sinal de inteligência, todos os bodes seriam profetas. KKK

Não agradou. Ante o silêncio, Yuri mudou de assunto. Criticou o governo, os políticos, contou fofocas de autoridades que ouviu dos passageiros e condenou o narcotráfico. Disse que ia sair da cidade, levar a irmã do patrão consigo e viver da comédia. Chega de encomendas suspeitas, disse quando chegaram ao destino.

Desde então, Yuri não mais atendeu chamadas pelo aplicativo e nem para o programa Uber Bom Humor. A audiência e os clientes queriam saber o que aconteceu. Eva Gaba, preocupada com o sumiço de Yuri, viu na TV viaturas policiais, Resgate e helicópteros no Parque Nacional. Um corpo em adiantado estado de decomposição e sem documentos jazia junto à represa, prensado nas ferragens do carro que um dia foi um Marea e agora estava sob uma enorme rocha negra. A notícia saiu em todos os jornais no dia seguinte:

“Yuri Pequeno, comediante do Uber Bom Humor, foi encontrado morto às margens da Represa Santa Maria, dentro do Marea esmagado por uma enorme rocha pesando mais de 2 toneladas. A polícia suspeita de suicídio. À boca pequena, comenta-se que pode ter sido queima de arquivo, pois ele abriu o bico, confiou em pessoas erradas e teria traído os companheiros.”

O Observatório Nacional, o INPE e a NASA negam o fenômeno, mas ninguém questionou o laudo pericial e o inquérito foi arquivado. Para os peritos, a causa do terrível incidente foi o enorme meteorito que caiu naquela região. Bruto, patrão de Yuri, não quis gravar entrevista. Na política, e no tráfico, vida que segue!

Laerte Temple
Laerte Temple
Administrador, advogado, mestre, doutor, professor universitário aposentado. Autor de Humor na Quarentena (Kindle) e Todos a Bordo (Kindle)

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