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sexta-feira, 26 de abril de 2024

A taça de cristal  

Capítulo Setenta

Estela observava sua filha, que a despeito de toda a confusão que ocorrera no local, continuava a brincar tranquilamente, como se nada houvesse ocorrido. De repente, num estalo, a moça colocou-se de pé e falou com o seu pai…

– Pai, o senhor se importaria em cuidar um pouco da Selene?

Mario olhou para a moça, não entendendo nada…

– Pai, não tenho como explicar… não sei como explicar… mas sinto que a Cecília está correndo perigo! E eu tenho que ajudá-la…

– Correndo perigo?! Mas… como…?

– Eu já disse, pai…. não sei explicar, mas estou sentindo…

– Então… eu… eu tenho que…

– Não… nesse momento, a única ajuda que a Cecí precisa é a minha e a da Helena…

– Como assim?

– Foi uma coisa que ela me disse, quando me deu esse pingente…

– E o que ela disse?

– “Separadas, somos fracas… juntas, venceremos todos os obstáculos que aparecerem em nossa frente…”

– E isso quer dizer…

– Quer dizer que tenho que encontrar a Cecí o mais rápido possível… ela está correndo perigo! 

– Mas como você vai encontrá-la? Ela e a Helena iam parar em algum lugar para comer, já que aqui as coisas descambaram…

– Pai, por favor… não posso perder tempo jogando conversa fora… o senhor pode cuidar da Selene, por favor?

– Está bem… mas me mantenha informado….

E Estela pegou sua bolsa e ganhou a rua… um pouco antes havia solicitado um Uber… e, assim como suas irmãs, desapareceu na noite…

Janete continuava sentada no mesmo lugar, olhar perdido em algures… Mario olhou para a esposa com um misto de raiva e pena… raiva por tudo o que ela aprontara nessa noite e pena pela situação que esta passava no momento. De certa forma ele conseguia compreender a ação da esposa… colocando-se no lugar dela, entendendo o quanto a mulher acreditava nos dogmas de sua religião, todos os seus atos eram desculpáveis, pois, a única intenção da mesma era salvar a alma de sua filha… e existe propósito mais sublime do que desejar o melhor para sua prole na outra vida? O diabo é que no afã de “salvar a alma de sua filha” Janete esqueceu-se de examinar o quadro todo e entender que nem sempre aquilo que parece certo para uma pessoa é realmente a expressão da verdade para todos… e a situação do casamento de Cecília e Ricardo era uma só… sem possibilidade de volta, pois o rapaz havia até formado outra família enquanto estava ao lado de sua esposa… como Cecília poderia ficar ao lado de um homem que tinha outra mulher e, ainda por cima, uma filha decorrente dessa união? Não, Cecília não era mulher de aceitar um casamento desse tipo…

O relógio acusava dez horas da noite… Mario achou por bem levar a pequena para dormir… pelo jeito, Estela não retornaria tão cedo. Deixou Janete onde se encontrava e subiu com a bebê para o quarto. Trocou-a, colocou-a no berço e cantou uma cantiga para a menina, que logo estava ressonando. Agora era hora de trazer a esposa para cima… as panelas e louça do jantar que permanecessem onde estavam… de manhã, antes de sair para o trabalho, pensaria nisso… ou, de repente, poderia fazer uma boquinha durante a noite. Agora, ele sabia que não conseguiria comer nada…. toda essa confusão havia atacado sua gastrite, e ele teria que tomar um remédio para aliviar a dor que sentia em seu estômago…

Mario colocou duas pastilhas de Pepsamar na boca e as deixou se dissolverem… aos poucos, o mal estar foi passando. Não o suficiente para atacar o jantar, esquecido sobre o fogão, mas pelo menos a vontade de vomitar o que não tinha foi aos poucos passando… a tensão sofrida durante essa noite realmente quase acabou com ele. O pior é que não podia nem ao menos se dar ao luxo de externar o que lhe acontecia… tinha que passar para as meninas que tudo estava sob controle… claro que elas sabiam que não estava… a maior prova disso é que, se não fosse a agilidade de Helena e Estela, provavelmente agora estariam recebendo a visita da Polícia Científica para recolher no mínimo dois cadáveres… até agora ele estava impressionado com a ação de suas meninas… enquanto ele simplesmente congelou, não conseguindo tomar nenhuma atitude, as duas evitaram a tragédia iminente…

E foi com todos esses pensamentos que Mario finalmente se colocou a frente de sua esposa. Ela continuava na mesma posição desde que tudo se desenrolou… sentada, mãos no colo, olhar perdido… normalmente ela estaria rezando, terço e Bíblia na mão, mas não essa noite… nessa noite estava perdida em seus próprios pensamentos… ainda não conseguira processar tudo o que ocorrera, desde que fizera o convite para que Ricardo comparecesse em sua casa à noite, para um jantar em família… tudo o que ela queria era salvar a alma de sua filha e, em extensão, a de seu genro, também… mas as coisas nunca saem como planejamos, não é mesmo? Ela caprichara no menu, para que tudo saísse perfeito nessa noite… quiçá o casal resolvesse suas diferenças durante a conversa à mesa e não iriam juntos para a sua casa, onde construíram uma história… talvez até mesmo se sentissem dispostos a aumentar a família… sim, de repente o que faltava para religar os dois era um filho… e ela pretendia expor essa ideia durante o jantar… mas…

– Janete…

A mulher ouviu alguém a chamar, bem ao longe… não conseguia reconhecer a voz de quem a chamava…

– Janete, pelo amor de Deus… acorde!

Mario segurou a esposa pelo ombro, na tentativa de despertá-la do torpor que se encontrava. Aos poucos a mulher foi retornando para a realidade, como se despertasse de um sonho… olhou para seu esposo, e apenas seu olhar, misto de tristeza e desespero estampados no rosto, eram tudo o que ela conseguia transmitir… não pronunciou nenhuma palavra, desde que acusara Cecília injustamente de tentar matá-la. Mario a abraçou e se absteve de falar qualquer coisa para a esposa, pois percebeu que não era o momento. Fosse qual fosse o pensamento que se passava pela cabeça de sua esposa, não era o momento de confrontá-la. Melhor seria esperar a noite passar… de manhã a perspectiva do mundo seria outra… pegou sua esposa pelas mãos e a conduziu para o quarto… colocou-a na cama.  Janete estava muito passiva. Em nenhum momento protestou contra seu esposo. Simplesmente se deixou guiar, como quando seu pai a conduzia quando criança…

Mario cobriu sua esposa e, sem falar nada, começou a acariciar seus cabelos. A mulher fechou os olhos, aceitando o carinho ofertado por seu esposo. Logo adormeceu… com o que sonharia? Quem sabe, não é mesmo? Mario deu um beijo na testa de sua esposa adormecida, apagou a luz e desceu até a sala. Sentou-se no sofá e ficou pensando em tudo o que acontecera naquela noite…como a vida é estranha… uma simples ação impensada desencadeia ações que ninguém espera… e agora… bem, na verdade, agora estava mais preocupado com as palavras de Estela… que Cecília corria perigo e que ela teria que ajudar a irmã…

Tania Miranda
Tania Miranda
Trabalho na Secretaria de Estado de Educação do Estado de São Paulo e minha função é "Agente de Organização Escolar", embora no momento esteja emprestada para o TRE-SP, onde exerço a função de "Auxiliar Cartorário". Adoro escrever, e no momento (maio de 2023) estou publicando meu primeiro livro pela Editora Versiprosa...

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