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terça-feira, 3 de setembro de 2024

A taça de cristal

Capítulo Quarenta e Quatro

– E o que você sentiu, quando viu o Ricardo?

– Pena…

– Pena… só isso?

– Sim… por que a pergunta?

– Bem, vocês foram casados um bom tempo… 

– Sim, e daí? Já nos separamos a um bom tempo…

– Não faz tanto tempo assim…

– Estela, quer que eu te diga uma coisa, de coração?

– Fale…

– Sinceramente, quando o vi ali, estendido na cama, inconsciente…

– Você ficou triste…  

– Não. Para mim era como se fosse um desconhecido… não senti nada vendo aquele traste ali…

– Mas você disse que sentiu pena dele…

– Como eu sentiria de qualquer um em sua situação…

– Cecília….

– Sério… o homem está acabado. Parece um mendigo… só não estava sujo e fedendo porque o pessoal do hospital o limpou e jogou no lixo suas roupas sujas…

– Fizeram isso?

– E o que mais poderiam fazer? As roupas fediam a urina e fezes… 

– Credo… como você sabe disso?

– Me mostraram… e perguntaram o que deveriam fazer com aquilo… se eu queria trazer para casa para lavar…

– Sério?

– Sério… então eu falei que a nova responsável pelo traste era a Roseli…

– E…?

– E, o que?  Ela também concordou que o melhor a fazer com aquele lixo era jogar fora, tocar fogo, enfim…

– Então ela ficou responsável em levar roupas limpas para ele no hospital.

– Sim… sinceramente, tenho mais dó dela do que dele….

– Por quê?

– Porquê não quero nem pensar em como está minha antiga casa… a julgar pela aparência dele, deve estar um chiqueiro…

– E já decidiu o que vai fazer a respeito da sua casa?

– Vou deixar com ele…

– É brincadeira, não é?

– Por quê?

– A casa é sua, caramba…

– Se eu a pegar, ele vai ficar na rua.

– E daí?

– Estela, não vou nem perder meu tempo te dando uma resposta…

Roseli estava preocupada. Sim, ela iria cuidar de Ricardo, embora não quisesse mais nada com ele…  mesmo porque sabia que ele desejava ficar perto de Cecília e não dela… mas, na situação atual, como poderia abandoná-lo? Cecília deixou bem claro que não moveria uma palha que fosse por ele… e como poderia culpá-la? Afinal, a forma como Ricardo agiu… em todo caso, agora não era hora de crucificá-lo. O melhor era cuidar de seu corpo e sua alma… sim, porque mais que seu corpo, sua alma estava despedaçada… claro que por sua própria culpa, pois entregou-se ao álcool quando viu que havia atirado pela janela os sentimentos de duas pessoas que se importavam realmente com ele… mas alguém teria que estender-lhe a mão, pois sozinho não tinha condições de superar seu vício… O relógio caminhava muito lentamente, as horas pareciam levar séculos para serem completadas… um minuto parecia ter a duração de um dia inteiro… sim… o tempo parecia estar parado…

– Rose, lugar de dormir é em casa!

Era sua supervisora, chamando-a de volta ao mundo real. Ela mordeu os lábios, para não responder. Apenas deu um suspiro profundo… 

– Olha, Rose… não sei qual é o seu problema… mas essa remessa já está atrasada. Precisamos agilizar…

– Suzana, desculpe…

– Não quero parecer insensível, mas temos prazos para cumprir…

– Você pode me dispensar a tarde, por favor?

– Está doida? Estamos com falta de pessoal…

– Bom, nesse caso estou te avisando que depois do almoço eu não vou retornar…

– Se fizer isso, está demitida!

– Então pode ir preparando a carta de demissão, pois não vou comparecer!

– Mas o que foi, mulher? 

– É o pai da minha filha… sofreu um acidente…

– Foi grave?

– Sim… foi atropelado…

– Sinto muito em saber… desculpe… é claro que pode ir!

– Obrigada!

E Roseli tratou de completar suas tarefas, pois dali a duas horas sairia de seu local de trabalho para visitar Ricardo no hospital… engraçado como a vida é, não é mesmo? Ela havia terminado seu caso com o amante, este demonstrou que não se importava tanto assim com sua presença, que seu desejo era voltar com a esposa oficial… acabou por cair na sarjeta da vida e agora dependia dela, pois o amor de sua vida simplesmente o rejeitara… a bem da verdade, ela só resolveu aceitar a incumbência de cuidar de Ricardo em consideração a dona Olga… afinal, a mãe do rapaz estava sendo muito generosa para com ela e sua filha… se não fosse por isso, talvez Roseli não estendesse sua mão para ajudar o rapaz… enfim…

Finalmente deu a hora de descanso, que para Roseli era a hora do final de expediente para aquele dia. Iria agora em direção às Clínicas, ver a situação de seu ex. Provavelmente receberia alta e ela teria que levá-lo para casa. Teria que ser para a casa de dona Olga, uma vez que a sua residência estava inabitável, tal a sujeira dos últimos meses… realmente o rapaz se tornara um “sem-teto”, mesmo tendo casa e tudo…. Rose até já havia iniciado a limpeza da casa, mas ela estava imunda demais… na primeira vez que retornou à casa, levou um choque, tal a degradação em que a mesma se encontrava. Era um milagre que ainda não a tivessem invadido… 

Sua previsão se realizou, e Ricardo estava realmente de alta. Os ferimentos foram apenas superficiais. Seu problema era mais da ordem psicológica, como lhe explicara a Assistente Social do Hospital. Ele teria que iniciar um tratamento com a máxima urgência… ou corria o sério risco de se tornar mais um caso perdido… afinal, sua depressão estava apenas no início, ainda havia como reverter… “Depressão?”, perguntou Roseli… “Sim,” respondeu a Assistente… o choque de ser rejeitado duas vezes seguidas fez com que seu mundo perfeito, onde ele era o senhor perfeito, simplesmente desabou. E ele ficou sem norte, pois de um momento para o outro tornou-se um inútil, um rejeitado… e simplesmente perdeu o norte para a vida…

Roseli balançou a cabeça… é, que problema tinha arrumado! Bem, quem mandou se envolver com um cara casado? O pior é que agora ela tinha que ajudar o rapaz sair do buraco em que se metera… era seu castigo, pensou ela… mas teria que fazê-lo, pela mãe do rapaz e por sua filha…

Tania Miranda
Tania Miranda
Trabalho na Secretaria de Estado de Educação do Estado de São Paulo e minha função é "Agente de Organização Escolar", embora no momento esteja emprestada para o TRE-SP, onde exerço a função de "Auxiliar Cartorário". Adoro escrever, e no momento (maio de 2023) estou publicando meu primeiro livro pela Editora Versiprosa...

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