Capítulo Vinte e Sete
Helena estava preocupada. Sua noite de sono foi agitada, e não era a primeira vez que o sonho se repetia. Ela sempre se via perdida na floresta de sua infância, e sempre era da mesma maneira… primeiro, como criança, quando uma fada (seria realmente uma fada?) a salvava das garras do monstro… depois, ela já adulta, fugindo do mesmo monstro, mas desta vez ela não tinha nenhuma ajuda para escapar de seu destino… e, invariavelmente, sentia as garras de seu algoz se fechando em sua garganta. A sensação era tão intensa, que ela ficava por horas sentindo as garras afiadas em sua pele, e teve uma manhã que ela tinha a nítida impressão de que um pequeno corte se fizera em sua traqueia… ela acordou com algumas gotas de sangue brotando de seu pescoço. Na verdade, haviam dois sonhos que se alternavam… em um, seu amigo de infância aparecia, e lhe dizia que ela enfrentaria uma grande atribulação em sua vida e que precisaria de toda a sua determinação para conseguir vencer os problemas que enfrentaria… se não fosse capaz, acabaria sucumbindo… e no outro, ela se via como criança e adulta simultaneamente, e o monstro a perseguia. Se alguém perguntasse que tipo de monstro seria, ela não saberia responder. Fora os olhos vermelhos faiscantes, apenas a escuridão envolvia tal aparição. Mas o cheiro nauseabundo permanecia em suas narinas por muito tempo depois de desperta. E o pavor que sentia durante o pesadelo… quando caia durante sua corrida pela floresta, a sensação de arranhar o joelho era tão vívida que certa vez ficou o dia inteiro mancando, tamanha era a dor que sentia da pancada levada no sonho… não, as coisas não podiam continuar dessa maneira…seu medo era que algum dia o monstro a matasse no sonho antes que ela pudesse acordar… isso seria possível? Falando assim, a coisa parecia meio idiota… mas é o que ela sentia. O engraçado é que em seus sonhos ela era casada… justo ela que tinha verdadeira aversão a casamento… se bem que, de repente, a aversão se devesse a repetição contínua do sonho… poderia ser isso. Ela olhou o relógio… eram nove horas da manhã. Como era domingo, não tinha outro remédio a não ser ir para a casa de seus pais… não queria ficar sozinha nesse dia… não depois do pesadelo vivido por toda a noite…
Enquanto caminhava até o ponto de ônibus, Helena começou a pensar no quanto sua família estava com problemas, nos últimos tempos… primeiro, a gravidez fora de hora de Estela, depois a separação de Cecília… se não bastasse isso, esses pesadelos que se repetiam noite após noite… se fosse supersticiosa, diria até que isso era algum tipo de aviso para que ela se cuidasse… Bom, na segunda ela ia ver a psiquiatra e quem sabe ela não lhe receitaria algum remédio que a ajudasse a dormir mais tranquila? Comentar sobre os sonhos com seus pais era inimaginável. Já até estava vendo sua mãe lhe dizendo que isso era falta de ir à igreja, que ela tinha que rezar mais e que deveria seguir os mandamentos da fé…
O dia estava agradável. Não estava nem muito quente, nem muito frio… e isso fazia com que sua caminhada até o ponto fosse, de certa forma, relaxante. Cruzou com alguns conhecidos, conversaram sobre amenidades, e assim foi seguindo. Quando estava próxima já do ponto, viu com o canto dos olhos a senhora Mariana, uma senhora já na casa dos oitenta anos… sempre que podia, Helena a evitava, pois achava a senhorinha muito maçante. Mas não conseguiu fugir, desta vez. A mulher a tinha avistado bem antes e já se encaminhava em sua direção. Bem, fazer o que, não é mesmo? Tudo o que ela podia pedir aos céus é que a conversa não fosse muito chata…
Era quase meio dia quando finalmente chegou à casa de seus pais… bateu na porta, embora soubesse que não havia necessidade disso, afinal tanto ela quanto Cecília, mesmo não morando mais naquela casa, tinham as chaves da mesma e a autorização de seu pai para chegarem a hora que fosse e entrassem sem aviso, pois aquela era a casa delas…
Quem abriu a porta para ela foi Cecília. Helena quase não acreditou. Afinal, pelo que sabia, sua irmã estaria morando no interior… bem, ao que parece, estava visitando seus pais, como ela…
– Oi, Ceci…
– Helena… a quanto tempo…
– É… faz o que… uns dois meses?
– Mais ou menos isso… e você? O que está fazendo da vida?
– Bem, hoje é minha folga…
– Não foi isso o que perguntei…
– Eu sei…
As duas entraram na sala. O senhor Mario continuava sentado no sofá. Quando viu as duas irmãs juntas, não conseguiu conter um sorriso. Afinal, as duas sempre foram muito unidas, e raramente ficaram tanto tempo separadas…
– Agora só falta a Estela…
– Ela está em casa, papai?
– No quarto… é onde se esconde, atualmente.
– E o namorado?
– Se matando em dois empregos…
– Sério?
– Sim… o pai dele se acidentou e não pode trabalhar por enquanto… a irmã ainda não tem idade para trabalhar… sobrou para ele…
– E ainda por cima tem a Estela…
– E ainda por cima tem a Estela. O pior é que ela não reconhece que o rapaz está fazendo o que pode… cuidar sozinho de uma família não é fácil…
– E a Estela…
– Acha que a obrigação do rapaz é vir visitá-la todos os dias… Ele entra no primeiro emprego às oito da manhã e sai do segundo às quatro da madrugada… não sei nem como é que está se aguentando nessa rotina…
– Bom, ele descansa no final de semana, não? É só vir visitá-la no sábado ou no domingo…
– Aí é que está… ele trabalha também nos finais de semana…
– Então já não se veem a um bom tempo…
– Sim… umas três semanas, mais ou menos…
– E ela está enfurnada em seu quarto…
– Sim… e não quer sair…
– Ah, não… eu quase não venho aqui, e quando venho não vou nem ver aquela chata?… Nem pensar… venha Ceci… vamos tirar aquela coruja de seu ninho…
– Eu acho que vocês deviam deixá-la em seu canto…
– Hoje ela tem que descer para almoçar com a gente… afinal, faz tempo que eu e a Ceci não aparecemos por aqui…
– Ainda acho que não é uma boa ideia…
As duas se fingiram de surdas e subiram até o quarto da caçula. Janete, que ouvira tudo da cozinha, se animou ao saber que a família estaria realmente reunida para o almoço dominical, depois de tanto tempo. Quiça não brigassem como da última vez. Isso já era esperar demais, mas a esperança é sempre a última que morre, não é mesmo? Enquanto arrumava a mesa para o almoço, Janete conversava com Mario. Os dois começaram a conversar tão animados, que nem notaram quando as três irmãs pararam ao pé da escada e ficaram olhando para eles. Depois de alguns minutos Janete se voltou para a escada e percebeu suas filhas a fitá-los, sorrindo. Ela sorriu também. Os cinco se dirigiram para a mesa e começaram sua refeição, pela primeira vez depois de muito tempo, sem que houvesse qualquer resquício de discussão…
Eram mais ou menos umas nove horas da noite quando Cecília consultou seu relógio e percebeu quão tarde era. Não tinha como retornar para a cidade, não naquela hora. Afinal, até chegar na rodoviária… além disso, os horários de partida dos ônibus já haviam se encerrado, o último saia às oito da noite… bem, ela faltaria no serviço na segunda… de mais a mais, estava bem no ranking de vendas, então não precisava se preocupar muito…
Mario perguntou se ela não queria dormir ali, mas Cecília disse que iria atazanar a vida da Helena… afinal tinham muita coisa para conversar. E as duas saíram em direção ao ponto de ônibus…
Mario e Janete estavam felizes. Afinal, depois de tanto tempo, tiveram um dia de paz com a família reunida. Era a primeira vez, em muito tempo, que as três irmãs ficavam juntas e não saiam no tapa. Na verdade, conversaram civilizadamente, faziam perguntas, respondiam, e em nenhum momento uma deu uma resposta enviesada para a outra. Ao contrário, parecia que não queriam se separar… o que a distância de vez em quando não faz pelas pessoas… Mario estava duplamente contente… afinal Janete ficou calada o tempo todo, apenas observando suas filhas à mesa, e depois na sala, enquanto conversavam. E em nenhum momento deu algum palpite infeliz para as três… Foi a primeira vez que chegou muda e saiu calada, sem tentar converter as filhas para sua igreja… e isso provavelmente ajudou bastante a manter a paz na família, nesse dia… Estela ria bastante das brincadeiras das irmãs… e também fazia as suas piadas, mas nada de atacar as duas, como era de seu costume. E, surpresa das surpresas… continuou a conversar com seus pais mesmo depois que as irmãs se foram. Sim, Mario podia dizer que este foi um domingo perfeito…
Enfim apareceu para rever a família… achei que se esconderia no destino e por lá ficaria…
Ela ainda vai retornar… na verdade, será ai que a Taça se romperá…