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quinta-feira, 5 de setembro de 2024

A taça de cristal

Capítulo Vinte e Cinco

Eram sete horas da manhã, quando Mario e Janete ouviram o som de uma chave destrancar a porta da sala. Tinham certeza de que deveria ser Helena. Talvez tivesse esquecido de alguma coisa quando viera conversar com seus pais. Bem, se fosse esse o caso, deveria ser algo muito importante, já que era domingo e ela não gostava de levantar cedo nesse dia, já que nos outros tinha que madrugar… Mas quem entrou na sala não foi Helena. Era Cecília quem chegava, depois de mais de um mês desaparecida do mapa…

– Mas que milagre é esse? De onde você surgiu, menina?

– Sem brincadeiras, papai… ou vou me arrepender de ter vindo visitá-los…

– Nossa… ultimamente você e suas irmãs andam muito sensíveis…

Ficaram quietos por algum tempo, apenas se fitando. Janete chamou da cozinha…

– Cecília, vem cá um pouco…

– Já vai começar o interrogatório…

– Calma, Ceci… sua mãe não é tão sem noção, assim…

– Sei…

Cecilia se dirigiu à cozinha. Sua mãe veio ao seu encontro e deu-lhe um abraço. Ela estava visivelmente emocionada por rever sua filha…

– Minha menininha… mas o que aconteceu com você, minha filha?…

– Nada de excepcional, mamãe… as coisas simplesmente chegaram a um ponto que não tem mais volta… Chegou uma hora em que percebi que era melhor deixar o Ricardo para lá e tratar de viver minha vida…

– Mas… como é que as coisas chegaram a esse ponto?

–  Não dá para saber, mamãe… as coisas começam devagar… detalhes insignificantes que vamos deixando pra lá… mas que vão crescendo, vão crescendo… e quando percebemos, já não temos mais controle sobre a situação… foi assim que aconteceu…

– Mas… se separar…

– Mamãe, como é que eu vou viver ao lado de uma pessoa na qual não confio mais? É como eu disse, a situação ficou insustentável…

– Como…?

– Mamãe, ele tem outra família. Tem uma filha com a outra. Como é que eu podia aceitar isso, me diga, por favor?

– Deus pede para que perdoemos os pecados de nossos semelhantes, para que possamos ter os nossos perdoados!

– Pelo amor de Deus, mamãe… será que a senhora não consegue entender? Ele tinha outra! E uma filha de um ano! Entendeu agora, ou preciso desenhar para a senhora?

Cecília dá as costas para a mãe e volta para a sala. Janete, desolada, começa a chorar, enquanto inicia uma bateria de orações…

– Que foi, Ceci?

– A mamãe… acha que eu não devia ter largado do Ricardo…

– Bem, você conhece a sua mãe… para ela, o casamento é um sacramento que não pode e nem deve ser rompido…

– Eu sei, papai… mas até no judaísmo é previsto o divórcio, quando o casal não combina… e nossa religião é baseada em alguns dogmas do judaísmo, certo?

– Você sabe que eu não discuto religião… não é a minha praia…

– Sim, eu sei… é uma coisa meio complexa, não é mesmo?

– O que é que é complexo?

– Esse assunto… religião… afinal, todo mundo está certo e todo mundo está errado, quando se fala nisso…

– É por isso que eu disse, filha… não discuto religião… pois não sei nada sobre isso e não posso falar de algo que eu não entendo…

– Pensei que o senhor era ateu…

– Quem fala isso é a sua mãe… e você sabe que eu gosto de provocá-la, não é mesmo?

– É, eu sei… mas a mamãe às vezes exagera… sei lá, às vezes penso que fé demais não cheira bem…

– Pelo jeito, você gostou mesmo deste filme… até hoje usa o título em suas conversas…

– Mas foi um filme legal, não foi? E o título resume bem as igrejas, em geral…

– Filha, não deixe sua mãe te ouvir falar assim…

E os dois riram, imaginando o sermão que Janete aplicaria aos dois por serem tão hereges. Sentaram-se no sofá e começaram a conversar sobre amenidades. Um pouco depois, Janete entrou na sala…

– Filha, vou à missa, agora… não quer me acompanhar?

– Deus me livre e guarde… acabei de chegar de viagem, mamãe … quero descansar um pouco…

– Vai estar aqui quando eu voltar?

– Sim, mamãe… só vou embora à noite…

– Então, depois a gente conversa?

– Sim, mamãe… prometo que te conto tudo o que a senhora quer saber. Depois do almoço, está bem?

Janete assentiu com a cabeça. Olhou para Mario, acenou e saiu…

– Caramba… a mamãe não muda nunca, não é mesmo?

– Cada um tem o seu jeito, Ceci… esse é o jeito da sua mãe…

– Tudo bem… mas às vezes ela exagera um pouco…

– Porque?

– Ora, porque… ela é muito carola…

– Filha, cada um vê o mundo de um jeito… esse é o jeito da sua mãe…

– Tudo bem, papai… mas querer que eu continue ao lado de um cara que não só me trai como também tem outra família… aí já é um pouco demais, não acha?

– Te entendo… mas é que, para sua mãe, o casamento é um sacramento para a vida toda, onde só a morte pode separar os cônjuges…

– O senhor também pensa assim?!..

– Claro que não! Tenha certeza de que, se eu e sua mãe não déssemos certo, eu não pensaria duas vezes em ir embora…você sabe que não tem como compartilhar sua vida com alguém em quem não confia…

– Eu sei… mas a mamãe não pensa assim…

– Cada um tem seu jeito…

– O engraçado é que ela nem gosta do Ricardo… por ela, jamais teríamos nos casado…

– Bem, eu também nunca fui muito com a cara dele… sei lá, sempre me pareceu meio falso…

– É, acho que posso creditar o fracasso de meu casamento aos meus pais…

– Que é isso?… eu sempre o tratei bem…

– Sim… mas deixando bem claro que não o suportava…

– Ceci…

– O senhor já se esqueceu da primeira vez que ele veio aqui?

– E dá para esquecer?

– Olha, posso afirmar que ele com certeza tentou…

– Eu sei… afinal, mesmo depois de todo o “tratamento especial” que sua mãe lhe aplicou, ele continuou vindo te visitar aqui em casa…

– É, eu acho que ele realmente gostava de mim… ao menos naquela época…

– Olha, Ceci… eu acho que ele ainda gosta, e muito de você…

– Que jeito estranho de gostar… montando outra família…

– Bem, temos que convir que você também não facilita muito a vida dele, não…

– Porque?…

– Bem, começou com você decidindo que não queria ter filhos…

– Ainda bem, não? Imagina a minha situação hoje, com uma criança pequena para cuidar…

– Já pensou que, se tivesse concordado em ter filhos, as coisas poderiam ter sido diferentes?

– É mesmo? E quem poderia me garantir isso? Afinal, ninguém o obrigou a me trair com aquela zinha…ou ele foi obrigado a fazer isso?

– Não, claro que não… o que eu quis dizer é que… bem, você entendeu o que eu quis dizer…

– Sim, entendi… e não concordo com seu pensamento…

Os dois ficaram quietos por alguns momentos, absortos em seus próprios pensamentos. Enquanto Mario fitava um quadro na parede, Cecília olhava pela janela.

– Você lembra porque eu tratei mal seu namorado, não?

– Claro… o senhor teve que resgatar a gente lá no fim do mundo…

– Até hoje não consegui entender exatamente o que aconteceu…

– Nossa, papai… é simples… a gente foi no cinema e depois ele resolveu ir visitar um amigo…

– Mas vocês foram assistir a última sessão do dia… que diabos estavam pensando, meu Deus?

– Aí, já não sei dizer… olhando hoje o que a gente fez naquele dia, realmente foi uma ideia de jerico… mas na hora parecia uma ideia legal…

– Mas, legal aonde, menina? Onde já se viu visitar alguém em plena madrugada?!

– Visitar não é o problema…

– Ah, não? E o que seria problema, então?

– Pegar ônibus errado e não ter condução para voltar….

Os dois riram juntos. Um riso descompromissado, alegre. Fazia tempo que os dois não passavam uma manhã como essa, tranquila…

– O senhor acha que a mamãe realmente acredita em tudo o que diz?

– Sobre?!

– Ué, sobre fantasmas e igreja…

– Bom, a gente veio de um lugar onde as coisas mais estranhas aconteciam…

– E o senhor… já viu alguma coisa do tipo?…

– Já…

– E o que o senhor viu?

– Bom, você não vai acreditar…

– Ué, se me contar eu vejo se acredito ou não…

– Uma vez eu vi um lobisomem…

– Igual a esses dos filmes e revistas de terror?

– Uhn? Não, não… o lobisomem não ataca ninguém…

– Bem, nos filmes ele não só ataca como ainda transmite sua maldição para a vítima, isso quando não a mata…

– É, mas o nosso lobisomem é um pouco diferente…até no aspecto…

– Como assim?!

– Pra começar, ele não anda ereto, como um ser humano… só anda de quatro…

– Ahn?

– Olha, você sabe que, antes de me casar com sua mãe, eu viajei muito pelo sertão. Algumas vezes acabava dormindo ao relento. Às vezes, só, outras, com algum grupo de viajantes…

– E…?

– E foi em uma dessas vezes que dormi no Hotel das Estrelas que avistei um lobisomem…

– E ele era perigoso?

– Não… na verdade, ele só estava interessado em seu repasto peculiar…

– Como assim?

– Bom, você tem que lembrar que ele é um bicho encantado… portanto, seus hábitos são um pouco…estranhos. Entende?

– Na verdade, não…

– Bom, eu acho que o bicho pensa que é uma raposa… pois ele adora atacar os galinheiros. Mas não faz nada com as galinhas. Seu alvo principal são as fezes delas… é seu manjar favorito…

– Credo, que nojo…. 

 – Lembre-se do que eu falei… transformado, o bicho deixa de ser uma pessoa. Ele está encantado, portanto quem está comendo aquela sujeira é o ser sobrenatural, não a pessoa que se transformou no bicho…

– Ainda assim, é nojento…

– Eu sei… mas a maioria dos animais fazem isso…

– Mas não é um animal, papai… é um ser humano…

– Quem disse isso? Na Lua Cheia, à noite, é um ser místico, não tem nada de humano… quando o dia estiver amanhecendo ele volta a ser uma pessoa, mas durante a noite, nem tem consciência disso…  

– Tudo bem… é um animal encantado… e com o que ele se parece?

– De verdade? É bem parecido com um urso….

– Hein?..

– Sério…o traseiro fica bem proeminente… pernas curtas…focinho não tão comprido…

– E…?

– Se você não mexer com ele, não te acontece nada…

– Se mexer…?

– Bem, aí já viu, né? Como te falei, ele é um animal, então vai te atacar… é sua forma de defesa…

– Tá, tudo bem… então lobisomem existe… suponho que boi-tatá, mula sem cabeça, saci Pererê também existem…

– É claro que sim… mas esses bichos são bem mais brabos que o lobisomem, isso eu posso te garantir…

– O senhor está zoando da minha cara, não é mesmo?

Cecília começa a rir. Achou a história que seu pai lhe contou engraçada. Mas, diferentemente da primeira vez, agora ele não riu com a filha. Na verdade, ficou sério de repente. Era como se as lembranças de sua mocidade tivessem aflorado de repente, e coisas que preferia ter esquecido retornassem a sua mente…

– Nossa, papai… o senhor ficou sério, de repente…

– Algumas coisas a gente quer esquecer… mas…

– E o que o senhor queria esquecer, papai?

– Nada demais, minha filha… besteiras que a gente lembra…

–  E não vai contar que besteiras foram essas?

– Melhor não. Algumas coisas devem ficar enterradas no cemitério de nossas lembranças…

– Uauuu… isso agora me tocou…

E os dois voltaram a se calar, olhando juntos para a janela, como se quisessem ver no brilho do sol o que o futuro lhes reservava….

Tania Miranda
Tania Miranda
Trabalho na Secretaria de Estado de Educação do Estado de São Paulo e minha função é "Agente de Organização Escolar", embora no momento esteja emprestada para o TRE-SP, onde exerço a função de "Auxiliar Cartorário". Adoro escrever, e no momento (maio de 2023) estou publicando meu primeiro livro pela Editora Versiprosa...

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