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domingo, 12 de maio de 2024

Olhar e Enxergar

Dizem que sou um cara muito distraído. A bem da verdade, ando um tanto despombalizado, o que quer que isso signifique. Onde foi parar a pessoa que vivia em mim, atenta, criativa, feliz? Será que estudei tanto, apenas para chefiar o Call Center, passar 8 horas por dia, todos os dias, ouvindo reclamação de cliente e me desculpando pelos erros que não cometi? Isso não é justo! 

Na semana passada, fui ao cinema e estacionei na rua próxima ao shopping para não pagar mais pelo estacionamento do que pelo ingresso. Comprei o ticket e detestei o filme. Achava que era comédia, mas só tinha luta de samurai, narrado em japonês e com legenda minúscula. Saí antes do fim e vi que entrei na sala errada. Para complicar, não encontrei meu carro. Após meia hora procurando, fui à delegacia registrar a ocorrência. Resolvi ir para casa a pé para desanuviar e pensar na vida. Quando vi que estava perdido, andando a esmo, voltei de taxi. Três dias mais tarde, encontrei o carro, na mesma rua onde deixei. Tinha procurado na rua errada. Mas quem nunca perdeu um tempão procurando o carro no estacionamento do shopping porque não memorizou o piso e o setor onde estacionou? Eu também já fiz isso. Depois lembrei que tinha ido ao shopping a pé. Sou mesmo um cara muito desligado. Vivo voando, sem pousar.

Resolvi deixar o carro na garagem e usar transporte público para ver como é. Ontem, saí do trabalho e caminhei até o Metrô. Distraído, passei da estação e voltei tentando lembrar onde errei. É incrível como a gente olha e não enxerga! Será que existe alguma explicação para isso? Muitas vezes dirijo e chego ao destino sem lembrar por onde passei e como fui parar lá. Respeitei o sinal? Parei nas esquinas? Ando muito distraído. 

No Metrô, uma linda mulher sentou ao meu lado carregando três pacotes enormes, cheios de rolos de papel. Pareciam saquinhos de batata frita. Ela sorriu, desculpou-se e respondi apenas com um sorriso amarelo. Não a conheço e não gosto de dar trela a estranhos, mas ela puxou conversa, disse que se chama Soraia e comprou guache, cadernos, cartolina, argila e pincéis para trabalhar arte terapia com idosos e resgatar-lhes a alegria de viver. Achei interessante e perguntei se aceitam idosos com menos de 40. Ela riu e eu disse que não sinto prazer algum desde que minha vida foi fagocitada pela rotina

Soraia levantou de repente, pensei que fosse desembarcar, mas era para ceder lugar a uma mulher com criança no colo. Como eu não notei? Levantei-me e insisti que Soraia ficasse com o meu assento. Depois ela se levantou de novo, mas desta vez era mesmo para desembarcar. Saí também ao ver que estava no sentido errado. Carreguei 2 pacotes e convidei-a para um café. Entramos na padaria e ela se livrou dos pacotes e de duas blusas, como quem descasca cebola. O garçom a ajudou com volumes, ela o chamou pelo nome e perguntou se a esposa esta melhor. Que mulher atenciosa. Soraia me encantou!

Pedimos sopa e torradas. Ela disse que toda manhã, abre a janela, saúda o novo dia, canta com os pássaros, observa as nuvens e os cheiros do novo dia. Quis saber por que e ela citou Bernard Shaw: Alguns homens vêem as coisas como são e perguntam “Por quê?” Eu sonho com as coisas que nunca foram e pergunto “Por que não?” Senti inveja dela. Como eu gostaria de ver a vida com os seus olhos!

Despedimos e caminhei de volta prestando atenção nas coisas. Vi a moça com gato no colo, as crianças brincando com a bola, chafariz e o pedinte a quem dei 1 real. Eu só ando de carro, não conheço meus vizinhos e não reparo no que há em volta. O jornaleiro na esquina conversava com um cliente e por sorte não me viu, pois eu não sei o seu nome. Observei o pequeno lago, as carpas, a grama aparada, o Ipê amarelo florido, a decoração do Dia das Bruxas. Nossa! Estamos em outubro! Ando muito desligado. O tempo passa e a gente nem repara! 

No hall de entrada, vi o vaso de Renda Portuguesa e a bicicletinha vermelha. Entrei, fechei os olhos e inspirei para sentir o ambiente. A Soraia disse que quando vai à na praça, senta-se no banco, fecha os olhos, inspira e analisa os cheiros e os ruídos para sentir a vida de outra forma. Sentii o perfume de rosas e ouvi 2 sons: o rosnar nervoso de um cão e uma doce voz feminina: Rui, é você querido? 

Opa! A adrenalina na corrente sanguínea e os batimentos cardíacos acelerados me alertaram: Renda Portuguesa? Cão nervoso? Ipê amarelo? Rosas? Bicicleta infantil? Moro só, não tenho cachorro, não tenho filhos, ninguém me chama de querido e meu nome não é Rui! Abri os olhos e vi uma bela mulher assustada, saída do banho e enrolada numa toalha. Gesticulei pedindo calma, saí de fininho e dei de cara com o provável Rui. Simulei falta de ar e desmaio. Tentei cair com alguma dignidade enquanto procurava entender como entrei na casa errada. Ando mesmo muito distraído. Eu moro em apartamento!

Laerte Temple
Laerte Temple
Administrador, advogado, mestre, doutor, professor universitário aposentado. Autor de Humor na Quarentena (Kindle) e Todos a Bordo (Kindle)

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