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sábado, 4 de maio de 2024

Pedro e Leopoldina: 200 anos depois

Em algum lugar no metaverso do além, Pedro está intrigado. Sabe que uma data importante se aproxima, mas não se lembra qual. Aniversário de casamento? Qual deles? Enquanto pensava, Leopoldina o chamou por vídeo, nova funcionalidade disponível no celular dos desencarnados.

  • Amor, 7 de setembro de 2022 se aproxima.
  • Ô pá! E eu com isso?
  • O gajo, esquecestes? Vivíamos no Brasil e proclamastes a independência! Lá se vão 200 anos no tempo terrestre.
  • Raios. Sabia que era uma data importante.

A imperatriz pesquisou no Ghost Google, popular site de busca do outro mundo, e localizou Chico Xavier, que intermediou o contato com Pai Ambrósio, famoso médium e pai de santo da Rocinha. O nobre casal animou-se com a possibilidade de rever o Rio de Janeiro, o primogênito, a brava gente brasileira e a terra querida após 200 anos. Pedro queria rever Domitila, a bela e amada Marquesa, e Chalaça, o parça fiel que abandonou ao regressar a Portugal. Não entendeu quando Pai Ambrósio disse que chegariam no Galeão. Por que Galeão, uma nau de guerra fortemente armada? Uma luxuosa caravela bastaria.

Surgiram no saguão de desembarque do Galeão e estranharam os grandes pássaros metálicos, as pessoas e seus trajes. Preencheram o formulário e entraram na fila.

  • Quanta burocracia. Ninguém a nos receber. Veja só o espaço para o nome. Não cabe nem metade do meu: Pedro de Alcântara Francisco Antônio João Carlos Xavier de Paula Miguel Rafael Joaquim José Gonzaga Pascoal Cipriano Serafim de Bragança e Bourbon.
  • Escreve só Pedro Bourbon, ou Pedro I. Todos te conhecem.

O funcionário estranhou as datas de nascimento, ele 1798 ela 1799. Como não tinham bagagem, imaginou serem figurantes dos festejos da Semana da Pátria e deixou passar. Na saída, um caça passageiro os conduziu até o taxi clandestino e Pedro pediu para tocar para a Quinta da Boa Vista.

Nos semáforos, foram abordados por pedintes, vendedores e gente do tráfico. As ruas eram imundas, mas as praias continuavam lindas as banhistas seminuas. Pedro deixou Leopoldina na Quinta e foi para São Paulo, no Ipiranga.

Não reconheceu o riacho espremido pela avenida com malabaristas e vendedores nas esquinas. Perguntou por Domitila e Bonifácio, mas ninguém deu informação. Quando soube que a Capital agora fica no Planalto Central, buscou Leopoldina e rumou para Brasília para avistar-se com o tal Mito. Era 6 de setembro, véspera dos 200 anos do heróico brado retumbante.

O casal detestou Brasília e seus prédios envidraçados. Nenhum bosque, pomar, macaco, arara ou praia. Centenas de pessoas acampadas no Eixo comiam pão com mortadela e bebiam de uma lata vermelha. Na Praça dos Três Poderes, viram lanceiros em trajes de gala. Pedro imaginou ser em sua homenagem. Era ensaio para o dia seguinte e ninguém deu a mínima para sua presença.

Foi recebido pelo Cerimonial do Palácio que aprovou os 2 atores e os figurinos escolhidos. Surgiu uma manada de estranhas montarias sobre rodas. Disseram-lhes que era uma motociata. O Mito parou uns minutos no cercadinho rodeado por seguranças e bajuladores e entrou no Palácio.

  • Salve Pedrão! Bom dia madame. Vamos entrando, tá Okei.

O anfitrião acompanhou o casal ao salão nobre, pediu Tubaína, pastel, deixou Leopoldina com a primeira dama e puxou conversa com o “figurante”.

  • E aí Pedrão, o que é que tu conta?
  • Como andam as relações com a Corte?
  • Muito difícil, porr@! Não me dão sossego. É um inquérito por dia.
  • Lamento que após tanto tempo ainda não tenham se entendido.
  • Pois é. Política é assim. Pedroca, você é da Direita ou da Esquerda?
  • Eu era o Poder Moderador.
  • Já vi que é do Centrão. Isentão, rá rá rá. Deixa prá lá.
  • Diga-me cá uma coisa, ô pá. Como está o Caxias?
  • É meu grande herói, mas tem gente que não gosta dos militares.
  • Portugal e Espanha ainda são poderosas?
  • Nem se classificaram para as finais da Eurocopa. Deu Itália.
  • Quais são as potências militares atuais?
  • Tem a China, a Rússia, mas os Estados Unidos ainda lideram.
  • As 13 Colônias? Quem diria! Ainda bem que papai escreveu ao George Washington desejando sucesso. Onde encontro Chalaça?
  • Cachaça tem em todo lugar. Quem é chegado é o Luiz 51, rá rá rá.
  • É algum descendente do Luiz XVI? O Chalaça que procuro é o Francisco Gomes da Silva, grande amigo. Deixa estar, ô pá! Cadê sua coroa?
  • Eu me separei faz tempo. Agora tô com a Michele, mais novinha e mais gata!
  • Não vos compreendo. Onde fica o trono?
  • Naquele corredor, segunda porta à esquerda. O das damas fica ao lado.
  • Tens dois tronos? Um para ti e outro para a madame? Interessante.

Pedro foi ao trono e o Mito convidou Leopoldina para uma motociata em Copacabana no dia seguinte. Nisso, um raio atingiu o terreiro do Pai Ambrósio e a conexão com o além caiu. O nobre casal desencarnou novamente e retornou à cripta do Monumento do Ipiranga.

  • Michele, cadê os dois artistas? Adorei as fantasias.
  • Raios! Esse Pai Ambrósio é um charlatão. Estive em São Paulo, no Rio e não consegui rever o Chalaça, nem minha querida Marquesa Domitila. O tal Mito é um doido varrido. Que triste sina teve meu império.
  • Bem que mamãe falou para não sair da Áustria. Morri no parto, o gajo casou-se de novo e após 2 séculos sem me ver, nem pergunta como estou. Só quer saber da rapariga de Santos. E essa obra no Museu? O barulho durou uma eternidade. Descanse em paz? Rá rá rá! Só pode ser piada de português. Raios!
Laerte Temple
Laerte Temple
Administrador, advogado, mestre, doutor, professor universitário aposentado. Autor de Humor na Quarentena (Kindle) e Todos a Bordo (Kindle)

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