No atual ordenamento jurídico brasileiro temos alguns julgamentos legislativos. São os casos dos impeachments e das perdas de mandato por quebra de decoro parlamentar. Nestes casos temos o julgamento de líderes do executivo ou de membros de casas legislativas não por juízes, e sim por parlamentares, ou seja, políticos com mandatos eletivos.
Os juízes possuem uma série de prerrogativas e imunidades criadas pelo legislador para tentar garantir a imparcialidade. Destaco a vitaliciedade do cargo, impedindo que um juiz seja pressionado com o risco de perder seu cargo caso tome tal ou qual decisão. De acordo com nossa Constituição é importante que os julgadores não estejam sob o jugo da opinião popular, visto que a função de um juiz é interpretar a lei e julgar de acordo com ela, e não ceder a opinião de maiorias políticas. O judiciário tem de ter a possibilidade de ser contra-majoritário.
Mas como o julgamento de impeachments e perdas de mandato por quebra de decoro parlamentar são feitas por políticos com mandato, estes julgamentos são influenciados enormemente tanto pelo momento político atual quanto pela opinião popular.
Analisemos por exemplo os impeachments de Collor, Dilma, e os impeachments que não ocorreram de Temer e Bolsonaro. Collor e Dilma não perderam seus mandatos devido a corrupção. Praticamente todos os governos da Nova República tiveram escândalos de corrupção bem próximos aos presidentes. O que aconteceu com estes dois presidentes foi que eles perderam a capacidade de manter o apoio da maioria do Congresso Nacional, fazendo com que a capacidade do Executivo governar o Brasil ficasse impossibilitada. Nas crises políticas dos governos Collor e Dilma o Brasil ficou ingovernável. A saída encontrada pelo parlamento foi, em ambos os casos, afastar o presidente.
Apesar de muito traumáticos, estes impeachments foram soluções melhores do que o modo anterior que o Brasil usava para resolver estes casos: golpes de estado.
Mas Aniello, e a questão dos crimes de responsabilidade? Os presidentes não foram impedidos por terem cometido estes crimes? Sim e não. Formalmente sim. Mas a legislação que define os crimes de responsabilidade é de 1950. Além de ser bastante antiquada e um tanto dissonante do atual ordenamento jurídico nacional, as definições de crime de responsabilidade são imprecisas e genéricas. Isto poderia ser sanado caso se criasse uma jurisprudência sobre o assunto, de forma técnica de acordo com a ciência do Direito.
Quem efetua o julgamento do impeachment são os parlamentares, sujeitos a pressões políticas, interesses eleitoreiros e coisas afins. E é por esta razão que presidentes com forte apoio popular e/ou fortes alianças no Congresso acabaram se mantendo no cargo mesmo cometendo atos bem mais tipificáveis como crimes de responsabilidade que as pedaladas fiscais e afins. É por isto que Temer chegou ao final de seu mandato, e Bolsonaro continua Presidente do Brasil.
Isto tem bastante semelhança com o julgamento de quebra de decoro de parlamentares. Analisemos casos recentes. Temos por exemplo o caso dos deputados estaduais de São Paulo Arthur do Val e Fernando Cury. Fernando Cury cometeu assédio sexual apalpando a deputada Isa Penna e foi suspenso por seis meses. Arthur do Val fez declarações misóginas direcionadas a refugiadas de guerra e teve seu mandato cassado por unanimidade.
Apesar de quase todo mundo concordarmos que Arthur do Val mereceu sua punição, também é bem nítido que Fernando Cury cometeu uma quebra de decoro muito mais nítida e grave. E Arthur do Val perdeu mandato mais devido sua escolha de fazer uma política de ataque a tudo e a todos, impedindo qualquer tipo de aliados, do que devido suas declarações, por mais odiosas que foram.
Fatos similares estão ocorrendo agora mesmo no Congresso Nacional. No momento em que escrevo estas linhas o Deputado Federal Glauber Braga esta com um processo em análise na Comissão de Ética acusado de ter quebrado o decoro parlamentar ao perguntar para o Primeiro Ministro do Brasil Presidente da Câmara dos Deputados Artur Lira se ele tinha vergonha na cara . Depois o chamou de ditador quando teve a palavra negada e foi ameaçado de ser expulso do parlamento. Tais atos geraram um processo de análise de quebra que atualmente tramita em tempo recorde.
Ao mesmo tempo temos um deputado que se refugiou na Câmara dos Deputados para descumprir uma ordem do STF, e outro que defendeu o direito de um Partido Nazista vir a existir no Brasil, e seus processos de quebra de decoro sequer entram em pauta.
Se olharmos para o passado, podemos lembrar que um deputado já falou que não estupraria uma colega parlamentar por ela não merecer, ato que gerou indenização jurídica. Este mesmo deputado fez elogio a um torturador condenado no exercício de seu mandato. E lá na década de 90 este mesmo deputado declarou que fuzilaria o Presidente da República na época, fecharia o Congresso Nacional e faria uma guerra civil caso fosse eleito presidente. Quebra de decoro? Não segundo seus pares.
Hoje Glauber Braga corre risco de perder o mandato por incomodar um Primeiro Ministro do Brasil Presidente da Câmara com forte poder político graças ao controle atípico que hoje tem sobre o Orçamento da União e por ser aliado do Presidente da República. Já Daniel Silveira e Kim Kataguiri estão com os mandatos muito mais seguros mesmo tendo cometido atos bem mais próximos do que normalmente consideraríamos quebra de decoro.
Assim como os crimes de responsabilidade, a quebra de decoro parlamentar carece de uma definição precisa ou de uma jurisprudência coerente e técnica, o que gera julgamentos puramente políticos, feitos com base na conveniência e na capacidade de cooptar ou não os aliados corretos.
No momento atual temos um Presidente em exercício de seu mandato com um número recorde de pedidos de impeachment, nunca analisados, bem como número recorde de acusações de crimes comum na PGR, também sem análise. E temos um Primeiro Ministro do Brasil Presidente da Câmara que dia sim dia também atropela o Regimento da Casa com urgências descabidas e outras manobras, e que agora tenta silenciar um oponente político inconveniente, ao mesmo tempo que tolera claras quebras de decoro por parte de seus aliados.
É um momento de grave insegurança política. Políticos perdem ou mantém seus mandatos com base no jogo político, independente de seus atos. E uma crise política sem precedentes na Nova República se cria.
O Palácio do Planalto decretou guerra ao Supremo Tribunal Federal e ao Tribunal Superior Eleitoral, as vésperas das eleições. E para dar sustentação a seus ataques busca constante apoio em sua função de Chefe Supremo das Forças Armadas. Enquanto isto a Câmara dos Deputados opta por impor uma linha de apoio incondicional a Arthur Lira e Jair Bolsonaro.
O Brasil está com a taxa Selic, o índice de desemprego e a inflação anual acima de 10%. A popularidade do Governo despenca a olhos vistos. Isto depois do trauma de perdermos mais de 600 mil brasileiros para a pandemia. Nos aproximamos de uma ingovernabilidade novamente. Ou melhor, já estamos nela. Mas diferente das épocas de Collor e Dilma, o processo de impeachment parece hoje uma piada.
Quando alguma normalidade for reconquistada, teremos urgentemente de rever estes processos legislativos de impeachment e quebra de decoro. Torna-se necessárias tanto uma tipificação mais clara destas infrações como principalmente métodos de despersonalizar estes julgamentos.
Ou pagaremos preços cada vez mais caros.