O tema do aborto volta e meia ganha destaque, mas faz tempo que não ganha tanto destaque quanto recentemente. Primeiro foi o discurso do Lula defendendo a descriminalização do aborto, e a chuva de críticas que ele recebeu. Críticas até de quem defende os direitos reprodutivos da mulher. Ciro Gomes foi um dos mais veementes, dizendo que levantar este tema agora seria só permitir que os moralistas reacionários levassem o debate para o terreno deles.
Mas logo após veio o caso da juíza que assediou uma criança a ter um filho, mesmo tendo o direito legal ao aborto. E também a decisão da Suprema Corte Americana de anular a decisão anterior no caso Roe vs Wade, permitindo aos estados aprovarem leis contra os direitos reprodutivos da mulher.
A questão religiosa
O tema deveria, em minha visão, ser simples. Mas décadas de doutrinação acabaram criando tantos argumentos e malabarismos que vai exigir a divisão em temas para se tentar fazer uma abordagem mínima. Então, como diria Jack, o estripador, vamos por partes.
Apesar de ser, na minha opinião, a questão menos importante, é a questão mais importante para a maioria das pessoas. Não sou uma pessoa religiosa, mas a maioria do Brasil é. E o lobby religioso pela proibição absoluta do aborto é muito ativo no Brasil. A Igreja Católica e a grande maioria das demais denominações cristãs no Brasil defendem que logo após a concepção o embrião já tem alma própria, sendo portanto um pecado contra a vida matá-lo. O aborto, para estes religiosos, é tão hediondo quanto o assassinato de um inocente incapaz de se defender. Mas ao meu ver apenas na retórica, pois apesar do repúdio ao aborto não tratamos socialmente nem penalmente como um ato igual ao homicídio.
Antes de entrar nos detalhes teológicos, o primeiro argumento que contraponho é que o fato de um ato ser considerado pecaminoso pela maioria da população não significa que o estado deva considerar este ato como ilegal. Exemplos disto são o divórcio, o adultério ou o sexo antes do casamento, atos considerados legais mas tido como pecaminosos pela doutrina cristã. Não estou querendo comparar a gravidade dos atos, apenas apontando que pecaminoso não é necessariamente ilegal.
Isto se deve ao conceito do Estado Laico, uma das bases da democracia cristã. A separação entre Igreja e Estado deve ser mantida para se garantir a liberdade de crença. Se o estado assume alguma visão religiosa como oficial, as outras crenças se tornam ilegais. Inclusive um dos primeiros grupos a perceberem isto foram os protestantes europeus, que só conseguiram ter o direito de discordar da Igreja Romana reconhecido legalmente com o estabelecimento do Estado Laico.
O fato da religiosidade brasileira repudiar de forma quase unânime o aborto não pode ser argumento para fazer do aborto um crime. Não cabe a polícia ou aos juízes humanos querer definir o que é pecado e o que é virtude, isto deve ser deixado para cada consciência seguir sua crença.
Mas mesmo desconsiderando a questão do Estado Laico é importante ressaltar que existe divergência mesmo dentro do cristianismo. Apesar da posição oficial do Vaticano e de muitos pastores serem pela sacralidade da vida do embrião, muitos grupos cristãos discordam. Basta ver como as igrejas cristãs consideram a questão em países onde o aborto é legal.
E se formos olhar para as bases da rejeição do aborto pelos cristãos veremos que ela nunca foi universal. Primeiramente o tema não é abordado nas escrituras, pelo menos não de forma clara. Em nenhum trecho bíblico há uma proibição explícita da interrupção da gravidez, e sim alguns poucos trechos que podem ser interpretados de tal forma, ou de forma diversa, de acordo com o leitor.
Historicamente muitos cristãos no início do cristianismo defendiam uma visão similar a visão aristotélica. Na época se considerava que a alma era o que animava o ser, o que permitia que ele se movimentasse por vontade própria. Então o feto só era considerado portador de alma após o primeiro movimento. Antes disto seria um ser inanimado, sem alma. Foi a opinião de, por exemplo, Agostinho de Hipona e Tomás de Aquino, além dos Papas Inocêncio III e Gregório IX. Somente em 1869, com o Papa Pio IX, que o Vaticano declara a doutrina da incorporação da alma na concepção, entendimento mantido até hoje. Se quiserem uma análise mais detalhada dos argumentos teológicos sobre esta questão, sugiro a leitura deste artigo.
Então devemos reconhecer que mesmo entre os cristãos há divergência sobre se o aborto é um pecado contra a vida ou não.
A questão biológica
Se deixarmos o conceito de alma em aberto, podemos passar a analisar sobre quando se forma um novo indivíduo humano. Quando é que temos o surgimento de uma nova pessoa. Aqueles que defendem que o aborto deveria ser considerado um crime costumam a usar dois argumentos para defender que um embrião é uma nova vida humana.
O primeiro é a questão de uma nova identidade genética. Logo na fecundação do óvulo pelo espermatozóide temos um novo código genético, portanto um novo indivíduo. Infelizmente a questão não é tão simples. Dois fenômenos, um conhecido e outro menos conhecido, mostram que uma carga genética não define individualidade.
O primeiro são os gêmeos univitelinos. Gêmeos univitelinos são clones genéticos, ou seja, são dois indivíduos distintos que são geneticamente idênticos. Além disto temos o caso menos conhecido das quimeras humanas. Alguns indivíduos possuem dois ou mais códigos genéticos distintos em tecidos ou órgãos diferentes. Por exemplo um código genético no sangue e outro nos ossos.
E isto é explicado exatamente pela embriologia. Nos estados iniciais de um embrião ele pode se dividir e formar gêmeos, trigêmeos, etc. Estes serão gêmeos univitelinos. E no caso de dois embriões de fecundações distintas no mesmo útero se fundirem nestes estágios iniciais, o que deveria gerar dois gémeos bivitelinos,§ teremos uma quimera, um corpo com dois códigos genéticos. Estes exemplos nos mostram que o código genético próprio é insuficiente para que possamos considerar um grupo de células como um indivíduo.
O segundo ponto muito usado para criticar o aborto biologicamente é que um embrião tem o potencial de se tornar um indivíduo, e que, caso se siga o curso natural, ele se tornará um indivíduo. O que novamente não é tão simples assim.
O destino mais comum de um embrião fecundado é ser eliminado sem produzir gravidez. Mais de 70% dos embriões não nidificam na parede do útero, e não se transformam em um feto. Além das inúmeras causas de aborto natural que sequer são percebidos quando ocorrem nas primeiras semanas. Se formos analisar em termos potenciais, até mesmo o uso de contraceptivos são uma forma de interferir no “curso natural” para impedir a formação de um novo ser.
Biologicamente temos que lembrar que até a formação do sistema nervoso central e do sistema cardiopulmonar tanto embriões quanto fetos são completamente dependentes do metabolismo da gestante. Não são capazes de manter metabolismo e equilíbrio homeostático próprio, não podendo, portanto, serem considerados organismos independentes. Sem nenhum juízo de valor moral, até este estágio o feto se comporta como um parasita, se utilizando dos recursos do organismo da mãe e causando prejuízos ao mesmo.
A questão de direito
Sob a ótica da ciência do Direito a interrupção da gravidez é um clássico conflito entre dois direitos individuais e inalienáveis. O direito a vida do embrião e o direito a privacidade e controle do corpo da mulher. E como em todo conflito entre direitos devemos lembrar que nenhum direito é absoluto.
Nem mesmo o direito a vida é absoluto. Por exemplo, em situações de autodefesa ou defesa de terceiros é aceitável matar o agressor quando não for possível outros meios de defesa. Também temos os casos de pena de morte. No Brasil, em crimes de traição a pátria em tempos de guerra o traidor perde o seu direito a vida.
O segundo ponto a lembrar é que para o direito brasileiro o início da pessoa natural é no nascimento. Antes do nascimento o que temos seria uma expectativa de direito do nascituro. E isto se baseia nos costumes culturais brasileiros. Quando um recém-nascido morre temos o costume do enterro, do luto. E em alguns casos até mesmo modificação nos direitos de herança dos familiares. Não há, contudo, tradição de tratar a morte de um feto ou embrião como a morte de uma pessoa. Apesar do inevitável luto pessoal, não há os procedimentos típicos de morte de uma pessoa.
Da mesma forma tratamos hoje no Brasil o homicídio e o aborto de formas distintas. Mesmo sendo criminalizado, o aborto tem penas mais brandas que o homicídio. E tratamos de forma diferente a mulher que aborta e um assassino de crianças.
Então para balancear a questão o debate deve se centrar no que gera menos prejuízo aos bens jurídicos protegidos pelo direito da privacidade da mulher e da expectativa de direito do nascituro. O debate deverá ser, para o direito, analisar o que é preferível: condenar a gestante a uma gravidez indesejada ou não dar fim a gestação. O que nos leva a analisar a questão prática.
A questão feminina
O ideal aqui seria dar voz a uma mulher para escrever este ponto, mas tentarei exercer a empatia. Apesar de me ser impossível entender o que é uma gravidez indesejada, posso pelo menos me solidarizar com as mulheres que conheço.
A primeira questão prática que devemos ressaltar é que a proibição do aborto é notoriamente ineficaz em impedir que abortos ocorram. Praticamente todos os estudos em países que legalizam o aborto mostram que ocorre ao longo do tempo uma REDUÇÃO no número de abortos praticados. Isto mesmo. Legalizar abortos reduz o número de abortos.
Isto ocorre por que em quase todos os lugares onde o aborto é legalizado as clínicas de aborto são obrigadas por lei a fornecer instruções sobre saúde reprodutiva, métodos contraceptivos e educação sexual básica. A melhor forma de se reduzir abortos é educar a sociedade sobre como evitar a gravidez indesejada, e a legalização do aborto é um instrumento que ajuda nesta questão.
Além disto temos a segurança do procedimento. Abortos ilegais são feitos sem fiscalização legal, e muitas vezes sem a devida estrutura, ou até no total improviso. Não é a toa que a intervenção cirúrgica mais comum no SUS é a curetagem, ou seja, a retirada de material biológico após um aborto (natural ou provocado). O aborto ilegal é mais inseguro, gerando graves prejuízos e muitas vezes a morte, em especial para as mulheres de baixa instrução e baixo poder aquisitivo.
Vale ressaltar que o argumento clássico da irresponsabilidade da mulher que engravida não se aplica. Muito se pensa que a mulher que aborta é uma adolescente inconsequente com vida sexual ativa e muitos parceiros. Mesmo que fosse o caso, isto não justificaria obrigar a mulher ser mãe como penalização deste “erro moral”. Ainda mais se lembrarmos que a mesma cobrança não ocorre com o pai biológico. Espera-se que a mulher seja responsável por não fazer ou se proteger, mas não se cobra isto do parceiro.
E o perfil da mulher que aborta no Brasil é bem diferente do que se pensa. Um estudo realizado pela UnB em 2010 nos mostrou que a mulher que aborta no Brasil tipicamente é casada, tem religião, usa métodos contraceptivos e pertence a todas as classes sociais. Segundo o mesmo estudo quase uma em cada 5 mulheres no Brasil irão provocar pelo menos um aborto em sua vida. Ou seja, provavelmente você tem alguma irmã, prima, amiga, esposa ou namorada que já fez um aborto sem você saber. Devemos prender estes milhões de mulheres (bem como os médicos que auxiliaram)?
A criminalização do aborto na prática implica em mais abortos, abortos mais inseguros, e mais mortes de mulheres. Este é o impacto prático.
A questão moral
O último ponto que pretendo abordar é a questão moral. O que estamos preservando criminalizando o aborto? E o que preservaríamos se legalizássemos?
O que estamos preservando inicialmente é a integridade de um embrião (se ignorarmos que proibir abortos aumenta o número de abortos). Obrigamos uma mulher a seguir com a gravidez para que o embrião não morra. Mas a que preço? Colocar a saúde da mulher em risco, e, muitas vezes, obrigá-la a se tornar uma mãe, alterando para sempre a sua vida.
Optamos por defender um punhado de células em detrimento de uma pessoa. Aquilo que define uma pessoa não são os genes, ou os órgãos, mas sua mente, sua personalidade, sua consciência e sua história de vida. Consideramos um corpo sem atividade cerebral como um corpo, e não uma pessoa. Descartamos embriões sem grandes conflitos morais nos casos de fertilização in vitro, o famoso bebê de proveta. O procedimento envolve a fertilização e descarte de vários embriões para uma única gravidez.
Mas por preconceito, tradição, fanatismo, misoginia ou teimosia preferimos condenar milhões de mulheres a procedimentos médicos de risco na clandestinidade, ou obrigá-las a assumir uma maternidade contra seu desejo. Escolhemos um embrião em detrimento a uma mulher. Aquilo que poderia ser em troca do que já é.
E isto se baseia muito mais na visão que temos da função da mulher na sociedade do que em todos estes conflitos que discuti aqui. Culturalmente nos ensinaram por séculos que o ápice da vida de uma mulher é se tornar mãe. E que a mulher só se realiza desta forma.
Cobramos que a mulher sempre se responsabilize pela possibilidade de reprodução em sua vida sexual. Nem de longe damos a mesma responsabilidade ao homem. Até mesmo a responsabilidade de usar contraceptivos, muitas vezes insalubres, ocasionalmente falhos, cai sobre o ombro da mulher. Por isto muitos lembram que se homens engravidassem o aborto seria legal a milênios. Imagine obrigar um homem a ter enormes alterações corporais contra sua vontade.
E escolhermos condenar a gestante indesejada a se tornar mãe. Reduzimos a mulher a um forno, a um sistema reprodutivo. Sem vontade, sem liberdade, sem individualidade. Para preservar, ou melhor, fingir que preservamos um punhado de células. Algo sem sensações, sem emoções, sem pensamento, sem consciência.
Obrigar uma mulher a seguir uma gravidez indesejada é que deveria ser crime, similar a tortura, cárcere, escravidão.