(*) Davi Roballo
Em seu clássico “Admirável mundo novo”, Aldous Huxley, assim como Júlio Verne, George Orwel e Ray Bradbury, antecipou visionariamente o futuro em relação ao tempo em que se encontrava. Gênio, sim. Profeta e adivinho, não. O autor como um observador da vida e dos acontecimentos sabia que um movimento sempre gera outro, que toda ação tem uma consequência. E a época em que escreveu seu clássico (1932) talvez seja o ponto inicial quando se começou a perceber e a sentir as consequências que a Revolução Industrial nos deixou como herança. Sensível como fora, Huxley não perdeu a oportunidade de lançar seus olhos para além do horizonte na linha do tempo e então se pôs a descrever o que poderia vir acontecer.
No romance de Huxley, as máquinas fabricam crianças através de manipulação genética e úteros artificiais, produzindo seres humanos destinados a determinados serviços e desde que nascem são rotulados conforme a classe social e nível intelectual. O amor é livre, ninguém é de ninguém. As crianças são condicionadas desde a tenra idade através de sons e imagens a se conformarem com sua classe social e a obedecerem sem questionar, como também dependendo da classe a que pertencem, aprendem a odiar livros e o pensamento. Todos os habitantes tomam diariamente uma dose de SOMA, uma droga que não os deixa perder o entusiasmo e muito menos transgredir as normas. Quando há um princípio de revolta, a polícia utiliza bombas com uma maior concentração de SOMA, culminando com os revoltosos tomados por um choro quase que incontido de tanta alegria.
Em nosso mundo atual, devido o avanço em relação à genética, já é possível através da inseminação artificial escolher a estatura, cor da pele, dos olhos e dos cabelos do bebê. A clonagem já é uma realidade barrada nos códigos de ética estabelecidos. A questão sexual está migrando do ato íntimo do relacionamento para o ato banal da relação, ou seja, o que importa é o prazer aqui agora e quanto mais parceiros diferenciados, melhor. Como em “Admirável Mundo Novo”, sentimentos, família e moralidade já estão sendo considerados ultrapassados. A institucionalidade de pai e mãe como educadores e socializadores primários também aos poucos está perdendo a razão de ser, pois aos poucos está crescendo a delegação dessas responsabilidades ao Estado, pois os pais estão ocupados demais em prover as exigências banais da cultura de consumo.
Outro ponto atualmente interessante é o farmacológico, os seres humanos estão consumindo uma taxa alta de medicações, seja para dormir, para relaxar quanto para outros males decorrentes da aceleração exponencial das exigências e responsabilidades da vida moderna, entre eles a depressão, a ansiedade… Em síntese, a vida está tão artificial, que nossas emoções só estão funcionando com intervenções químicas artificiais. Nosso corpo está ficando tão sobrecarregado que não mais consegue produzir de forma eficiente os próprios hormônios e outros componentes químicos essenciais para o perfeito equilíbrio emocional e físico. Os fármacos como os ansiolíticos e antidepressivos são o SOMA atual, que silenciosamente alimentam a “Indústria da felicidade”, gerando milhões aos laboratórios.
Estamos vivenciando uma época que, embora tecnológica, caminha para o embrutecimento, justamente por estarmos confundindo tecnologia com o saber. Estamos nos tornando experts em operar máquinas e dispositivos eletrônicos em detrimento a nossa capacidade de abstrair. O pensar, o raciocinar, o avaliar estão sendo engolidos por mecanismos artificiais, ou seja, estamos sendo sugados e extinguidos como indivíduos por nossa própria criação, isto é, construímos a máquina e a máquina está destruindo o que há de humanos em nós.
No romance de Huxley a vida do personagem John, o “Selvagem”, é motivo de espanto, algo grotesco e ultrapassado, pertence ao tipo mais atrasado da espécie humana, pois o “Selvagem” pensa, questiona e não precisa tomar o SOMA. Gosta de Shakespeare e em sua leitura representa e interpreta a vida. O “Selvagem” reúne tudo àquilo que no “Admirável Mundo Novo” é inadmissível, algo que está aos poucos acontecendo conosco devido à degradação da cultura, um caminho que poderá nos conduzir ao mundo de “Fahrenheit 451” de Ray Bradbury, onde os bombeiros acreditam piamente que a profissão surgiu na história humana para queimar livros e demais propagadores de cultura e não para apagar incêndios.
*Escritor, Jornalista, Especialista em Comunicação e Marketing / Especialista em Jornalismo Político. e-mail: daviroballo@gmail.com