Na vila de Embaré, soam curiosas histórias sobre uma mulher de vestido vermelho que gargalha na noite escura. Ela traz a alcunha de uma rainha morta e uma rosa perfumada de paixão e mistério rente ao seio.
Lembro-me de ouvir os murmúrios curiosos que a gente da vila esquecida recitava à hora sombria do dia entre os ruídos do sino da igrejinha local. Naquele tempo, eu ainda era demasiado jovem e não compreendia o sereno enigma que se escondia por detrás das gargalhadas ressoantes que ecoavam pelas encruzilhadas da vizinhança. Porém, de meus anos de infância, guardei uma curiosidade insondável acerca da identidade dela…a mulher misteriosa de Embaré.
Na realidade, olhando agora da velhice, minha primeira idade parece envolta em brumas e certos detalhes das rezas que minha avó proferia junto de minhas tias na catedral de luzes bruxuleantes se perdem entre as dobras do pensamento. A cidadela onde nasci me parece tão longínqua, mas ainda me recordo das quatro ruas que a cruzavam e cujos paralelepípedos eram tão antigos quanto os espíritos daqueles homens de pele escura que os haviam posto sobre a terra lamacenta dali. A velha catedral dormia no centro da vila erguendo torres agudas rumo ao céu cinzento que beijava os bosques ignorados daquele recanto da humanidade. Casinhas de teto baixo povoavam o restante das ruas, entrecortadas por um ou outro comercio dos próprios locais.
Um silêncio perene vivia por sobre os telhados de sapê da vila; silêncio esse interrompido unicamente por eventuais corujas e urutaus que cantavam ao levantar da lua. Nesses momentos, fatos inexplicáveis ressoavam para além dos campos gelados onde o vento uivava com violência. Gargalhadas ruidosas se erguiam com uma amável malícia e silhuetas encurvadas erguiam-se das poças de lama que a chuva sempre deixava a sussurrar profecias de uma gente antiga que ali vivera. Do alto dos morrinhos, lampiões abriam seus olhos para mirar o véu de estrelas que pairavam sobre a floresta ignota. Mãos rígidas de trabalhadores incansáveis uniam-se em preces a deuses desconhecidos em um ponto fora da visão. Velas dançantes acendiam-se à beira da Estrada Velha, malgrado ninguém ali houvesse que as tivesse acendido e toda a cidade languidamente se houvesse retirado para um leito insone. Sempre percebi isso com um curioso temor que pairava entre o ardente desejo de contemplar de frente o mistério e o medo de deslumbrar-me com o insondável.
Em Embaré vivi até meus quinze anos, quando morreu minha avó, com quem eu vivia. Nesse tempo eu ainda temia a visita ao cemitério da vila. Contudo, mediante a inexorabilidade da partida de minha guardiã, me vi ali, diante do leito derradeiro da mulher que me criara com um lírio fúnebre nas mãos e um par de lágrimas correndo por minha face. Nessa idade, eu já não era tão curioso pelos encantos dos mistérios noturnos de Embaré. Não obstante, jamais pude me desvencilhar da memória do dia do enterro de minha vó, quando vi um ponto de luz esverdeada timidamente sentado sobre um túmulo e cujas nuances luminosas lembravam em alguma medida a silhueta de uma minúscula mulher alada.
Depois desse dia, vi-me obrigado a retirar-me do berço em que nasci e fui viver em uma cidade próxima sob os cuidados de minha tia. Ali permaneci por anos a fio, absorto na fatídica normalidade da vida humana….até o ponto em que me olvidei dos singulares mistérios do vilarejo de Embaré, onde eu vivera meus anos de infância.
Ali permaneci, até que, novamente, me deparei frente ao mistério do inominável que habita o coração de todos aqueles que travaram contato com as terras inóspitas de Embaré….
Era noite profunda quando eu caminhava por entre as ruas pubescentes de minha nova morada. Por motivos panegíricos de uma humana miséria, eu me havia sucumbido em uma espiral vertiginosa de alcoolismo e luxúria descomedidos, olvidando, gole a gole do infame néctar dos homens, a singular natureza que me houveram concedido em um tempo distante. Talvez, por isso tenha sido ela quem veio em meu socorro.
Em plena madrugada, caminhando à luz bruxesca de um luar soturno, a vi na encruzilhada, gargalhando, a mulher de vestido vermelho de quem tanto ouvi falar em Embaré. Seus cabelos ardiam como fogo em um tom ruivo que jamais observei antes; os dentes brilhavam brancos e alinhados, a pele era morena e os olhos, verdes como os bosques, repletos de um mistério indefinível. Ela usava um vestido encarnado com sete babados na saia esvoaçante e refulgentes pulseiras douradas.
Parei estarrecido em um sentimento incompreensível que não era medo, mas um hesitar de temor, como o que se tem quando, diante de um enorme desafio, temos um segundo antes de tomar a decisão de definirá o nosso sucesso.
Um círculo de velas a rodeava. Então, abrindo caminho pela escuridão da noite, a mulher começou a andar em minha direção. Sua saia de babados balançava refletindo o lume das estrelas.
-Meu filho…-
Quando ouvi a doçura de sua voz, senti meu corpo se revirar inteiro em um arrepio intenso e uma vontade de chorar e abraçar-lhe, como se visse minha própria mãe ali.
-Do que tens tanto medo?- Ela perguntou.- Do que você tanto foge? Não será de si mesmo?-
Desconheço porque razão ignorada permaneci em silêncio. Acontecia-o como se uma força ignorada me fizesse olvidar por completo o conhecimento do meu próprio idioma.
Ela me olhou com complacência e disse:
-Eu estou contigo, meu filho. Eu sempre estive, e sempre estarei. Fui quem te vi à beira do abismo e não te deixei cair. Fui eu quem te viu perder-se e hoje vim te achar. Eu te conheço desde muito antes dessa vida. Eu sou tua mãe antes de você vir para esse mundo de homens. Boa noite, meu filho. Eu sou Maria Padilha. –
Jamais olvidarei esse nome ou os fenômenos singulares que me fizeram despertar em minha casa no dia que seguiu. Em meu lábio, como uma involuntária lembrança, dormia um nome:
-Maria Padilha….-
Depois desse dia, volvi a Embaré e principiei meu processo de mudança não apenas de cidade, mas de vida. Desde então, curiosos amigos de terras ignotas têm se apresentado para mim trazendo-me belas mensagens de uma silenciosa filosofia. Sinto-me, entanto, mais deliciosamente Eu do que jamais senti-me antes.
Nunca mais vi a linda senhora Maria Padilha. Contudo, vivendo vez mais uma em Embaré, um delicioso sentimento de alegria e familiaridade me preenche quando, ao cair da noite, ouço estrídulas gargalhadas de um mulher além da Rua da Igrejinha.
Jamais compreendi o que torna Embaré tal singular retiro. O que sei é que, nos primeiros dias da Criação, o Mistério e o Ignorado decidiram fazer aqui sua morada. Cambiaram os tempos e cambiou o mundo. Eles, porém, aqui permanecem e permanecerão até que se dilua o tempo e a eternidade.
Autoria:
Ariel Von Ocker, nome social de Gabriel Felipe Montes Lima