Enfim, Madeleine terminara o trabalho. Toda a casa cintilava limpeza e arrumação até os limites do que era tolerável. As toalhas de mesa, todas haviam sido guardadas cuidadosamente, quase como um segredo, depois de ter a mulher passado todo o dia a torcer e esfregar o tecido áspero. O chão a enchia de prazer diante da mirada displicente que dava para o seu reflexo projetado na cera branca. As flores: todas regadas.
Madeleine contemplou, então, aquela serena perfeição. Sentiu-se um tanto sufocada e não compreendeu o porquê. Tudo era alvo e limpo, tão puro quanto um bebê recém nascido…
Senta-se no sofá, cujas almofadas ainda hoje haviam sido espanadas e afofadas. Observa o teto: curvas suaves no contorno branco indicavam uma irregularidade no terreno onde a casa fora construída. Uma orquídea solitária repousava num vaso retorcido sobre a mesinha de centro.
-Está bem…tudo vai muito bem, porque a casa está limpa e eu. Eu sou eu. E estou só…-
“Só…” o ensaio de um eco chega aos ouvidos da mulher. Ela passa a destra pelos cabelos acinzentados. Só agora percebe que suava pelo trabalho intenso. Não tinha cheiro algum, mas suava. Grânulos de sal se formavam e escorriam pela pele manchada de melasmas.
Madeleine se levanta. Vai até o quarto, pega as roupas: tudo terrivelmente branco e puro. Entra no banheiro. Ruído de água e a sensação serpenteante do líquido morno pelo corpo.
Sim…era feliz (diria). Feliz como se pode ser aos setenta.
Toalhas e chinelos. Madeleine se veste. De volta ao quarto, senta-se na cama. Um cansaço se formava em seu coração e o colchão macio era um convite gentil para o descanso, mas a mulher não cedeu.
Levanta-se. Caminha pela casa silenciosa e o som dos chinelos de borracha sobre o chão encerado produz um som agudo e estalado que seus ouvidos já não captavam com a mesma perfeição de outrora.
A mulher não percebia, mas de alguns dias até o presente, principiava a caminhar encurvada por uma dor frequente que sentia na base da coluna. Caso tivesse filhos, poderia pedir para que um deles lhe levasse ao médico. Porém, como não os tinha, não iria querer incomodar a algum dos vizinhos com seus problemas. Até mesmo porque nenhum dos conhecidos de seu tempo ainda vivia ali.
Na realidade, Madeleine era uma verdadeira relíquia do bairro de T. Ali chegara havia mais de cinquenta anos. Fora ela quem vira as velhas casinhas darem lugar às novas construções encurvadas e de formas estranhas. Ela, quem vira a srta. Ingham casar e ter filhos e o sr. Von Klark partir numa noite após comer um frango inteiro no jantar. -pobrezinho- dizia -eu o conhecia desde que tínhamos dez anos.-
-É…Deus tem seus propósitos…- sorria para si nos fins de tarde bebericando o mesmo café que com ninguém compartilhava não por falta de desejo, mas por falta de companhia.
-Tem sim, Madeleine. E o seu propósito há de chegar em breve. –
E, de fato, chegaria.
Naquele mesmo dia, após limpar por horas a fio, a velha mulher sentou-se diante da mesinha e sorveu de um gole só o café quente. Curiosamente, não se queimava mais com o calor da bebida depois de tantas décadas bebendo o calor da vida na xicarazinha de sempre. Xícara essa cujo fundo já se fizera amarelento e manchado pelos anos de cafés nele servidos.
A tarde caía e uma solidão profunda fazia morada no coração de Madeleine. Sentia-se velha e desgastada, como uma faca sem corte. Atentamente, olhava, meio sem entender o motivo, para a porta esperando que alguém batesse para que pudesse compartilhar como fora seu dia com quem quer que fosse. Apenas o silêncio a respondia. Tremiam-lhe as mãos em desassossego. Apenas ela as continha. Morde o lábio fino e ele lhe parece murcho e ressecado. Isso era sua solidão e, embora relutasse, sabia que assim sempre seria.
Madeleine observa o café. Espirais de leite sorviam-se no café em um doce solipsismo. Morde o lábio com inquietude.
-Se, ao menos, eu não tivesse arrumado a casa…-
Autor:
Gabriel Felipe Montes Lima