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quinta-feira, 25 de abril de 2024

O Grande Jogo da COVID-19

Dr. Anders Jensen Schmidt

Biólogo
Professor da Universidade Federal do Sul da Bahia
25 de março de 2021

Aqui estou eu no meu décimo sexto dia de sintomas associados à COVID-19. Esta doença já deve ter inspirado milhares de relatos de experiências e, para tentar prender a sua atenção, ofereço como diferencial a alegoria que permeou todas minhas noites de febre, sudorese e insônia: a de que estava em um programa de auditório de extremo mau gosto, participando de um grande e tragicômico jogo. Não uma simplória roleta russa, mas algo bem mais elaborado.
Suas regras até agora atormentam meu sono e, colocando-as em palavras, espero conseguir esvaziar a minha mente, conseguir noites melhores e, ao mesmo tempo, provocar a reflexão sobre esta estranha doença.

Fase 1 – Quem vai entrar no jogo?

Não tem jeito, cada vez que você interage com alguém ou com algo, você está enfiando a mão em um saco e tirando uma das bolinhas: “me infectei” ou “não me infectei”. Mas a proporção dos dois tipos de bolinhas nos sacos é variável, conforme o grau de estupidez da sua ação. Por que as pessoas se arriscam tanto? O excesso de autoconfiança e fé, de fato útil ao longo do jogo, nesta etapa inicial, pode ser um grande tiro no pé. Somam-se a isso diversos motivos
particulares. No meu caso, depois de um ano seguindo um isolamento social quase perfeito, fraquejei ao deixar meu filho brincar com uma criança desconhecida. As máscaras não foram suficientes e foi muita ingenuidade da minha parte achar que poderia ter sido diferente, quando se trata destas criaturinhas tão táteis que têm como preferência mundial uma
brincadeira chamada “pega-pega”. De fato ele “pegou” COVID-19 e rapidamente passou para mim e para minha esposa.

Fase 2 – Bem vindo ao jogo!

Quando saem os resultados dos exames confirmando COVID-19 a primeira coisa que ocorre é o autojulgamento. Sensação de ter falhado. Argumentos começam a ser levantados – Deixei meu filho brincar por amor. Argumentos são derrubados – uma criança de 6 anos de idade rompe o silêncio da noite e diz “pai, mãe, me desculpem, tudo isso é culpa minha”. Mesmo explicando com carinho que a decisão foi dos seus pais e não dele, a ideia do meu filho carregar qualquer peso na consciência caso um de nós morrêssemos era perturbadora. Mas ainda não há medo da morte na fase 2. A “brincadeira” está apenas começando. É o momento de sortear quais sintomas você terá que enfrentar. A boa notícia é que as crianças, em geral, têm um saquinho diferenciado, com sintomas leves e rápidos. Talvez este seja o único fair play do jogo, pois seria demasiadamente doloroso para os pais terem que encará-lo e ainda lidar com o sofrimento das crianças. Com o mais profundo pesar pelas exceções que sei que ocorrem, são os adultos e idosos que mais padecem. Mas é um sofrimento relativo. Algumas pessoas que estão lendo este texto vão dizer: “este cara é um fraco, um frouxo, tirei os sintomas de letra”. No outro extremo, outros dirão: “ele não sabe o que é ser entubado, este cara é um fraco, um frouxo”. Tudo bem. É natural que cada um tenha sua própria percepção singular sobre o que passou. Afinal, estamos falando de uma combinação de cerca de 13 diferentes sintomas interagindo com diferentes situações genéticas, físicas, psicológicas e estruturais. No caso da minha família, minha esposa tirou no seu sorteio os sintomas “fortes dores no corpo”, “perda de olfato” e “perda de paladar”. Minhas papilas gustativas permaneceram funcionando bem, mas fui contemplado com 7 dias seguidos de febre e sintomas associados só nesta primeira fase. Mas o grande sorteio da fase avançada ainda estava por vir…

Peças disponíveis

O Grande Jogo da COVID-19 inclui várias peças reaproveitadas de outros jogos. O uso delas irá depender do quanto o jogador é influenciado por sugestões imprudentes do Journal of International WhatsApp Messages, que ganha força diante da ausência de consenso científico quanto ao tratamento da doença. Observei que, até em um mesmo hospital, cada médico tem a sua preferência. Uns começam com uma “entrada” de remédios contra vermes, outros abrem os serviços combatendo piolhos e, correndo por fora, ainda existem profissionais que receitam medicamentos contra malária, doença causada por um protozoário. Criaturas mais distantes evolutivamente de um corona vírus, do que um ser humano está de um peixe, o que faz a gente refletir sobre a efetividade destas primeiras peças. No entanto, outras peças parecem realmente funcionar para atenuar os sintomas e, pelo menos no meu caso, tive que tomar (com recomendação médica) antitérmicos e corticoides como se fossem M&Ms. É tanto remédio, que me parece insano minar o organismo com medicamentos desnecessários antes de entrar efetivamente no jogo. Nada disso poupará você de enfiar a mão no saquinho e tirar a sua sorte.

Fase 3 – A temível Fase Avançada

O sorteio mais tenso envolve tirar a bolinha “não peguei pneumonia” ou a bolinha “peguei pneumonia”. Não ache que a sua situação física e psicológica irá influenciar nesta etapa. Eu, com 48 anos, com histórico de atleta (no sentido profissional, indo além de flexões de quartel e academia), não tabagista e de bem com a vida, não escapei da “pneumo bolinha”. Assim, tive que encarar o grande desafio da fase avançada, onde prevalece o medo da morte. Não por pânico, mas porque de fato esta chance passa efetivamente a existir. E junto com ela, a possibilidade de deixar de estar com quem amamos e deixar de aproveitar tantas coisas boas da vida que ainda podem ser experimentadas e repetidas. Ao mesmo tempo vem à cabeça: por que logo EU fui sorteado? Por que não um dos vários canalhas que coalham os governos? É como se um poder divino máximo estivesse delegando as decisões destes sorteios para um ministro alado, de um supremo tribunal luciferino: para o povo, tubo! Para os corruptos, habeas corpus! Sim, habeas corpus, em bom português: “que tenhas o corpo”. O contrário do que parece acontecer com o afetado pela pneumonia, cujo corpo parece se esvair pela respiração ofegante acompanhada incessantemente pelo oxímetro. Este aparelho é o placar desta fase e indica o seu desempenho em atingir a meta de saturação de oxigênio acima dos 93%. Não é nada fácil para quem está com uma forte pneumonia. Pensava o tempo inteiro nos mais velhos. Você da melhor idade, não ouse entrar neste jogo perigoso!

O perigo ao qual o jogador está submetido também é aferido no sangue. Todos os exames que antes me apavoravam viraram brincadeira perto das agora frequentes gasometrias, que envolvem a busca de artérias mais profundas para obter as almejadas amostras. Enquanto estes incômodos são pontuais, outros são mais persistentes e, causando inveja em muitos ministros do meio ambiente, devastam a nossa flora intestinal, como uma “boiada passando”. São os antibióticos, peças fundamentais nesta fase avançada. Apesar de seus efeitos colaterais, é neles que a esperança de vida passa a ser depositada. A ponto de eu beijar os comprimidos antes de engolir. A cada ingestão, vêm à cabeça todos os cartuchos que foram queimados com banais dores de garganta, sinusites, extrações de dente, etc. Logo percebi que a preocupação não era infundada. Os primeiros 5 dias de antibiótico de nada adiantaram e a pneumonia tomou 50% dos meus pulmões. Um segundo antibiótico começou a ser utilizado e, caso também falhasse, o destino seria provavelmente respirador e tubo. Felizmente as febres foram ficando mais espaçadas e… bingo! Já era hora de ter alguma sorte neste jogo. Estou aqui escrevendo para vocês. Porém, os sorteios ainda continuam – “com trombose” ou “sem trombose” – e tome-lhe anticoagulante para fugir desta última e maligna bolinha que pode até levar a um AVC ou infarto. Escapei novamente. Assim, o fim da fase avançada foi anunciado pelo término definitivo da febre e melhora (lenta) da respiração. Passei a dar mais valor a cada inalação. Como é bom respirar! A alegria de estar vivo, no entanto, é minada quando penso naqueles que não conseguiram passar desta fase, levando seus sonhos, deixando saudades e tristezas. Não há muito o que comemorar neste jogo.

Fase 4 – Fim de jogo

No caso de quem partiu, o jogo é finalizado pelos entes que ficaram, suportando toda a dor da perda e ainda administrando as várias lacunas da estrutura familiar. Para quem sobrevive, é difícil saber quanto tempo esta última fase irá durar. Tantas sequelas deixadas pelo excesso de medicamentos… E o arraso emocional é tão grande, que é difícil conter lágrimas ao pensar nas médicas, enfermeiras, familiares e amigos que ajudaram no jogo. Até mesmo uma banal cena de TV ou música bonita pode fazer chorar. Resta o conforto de ter escapado do pior. É bom estar vivo. A vida é boa demais, apesar de tantas dificuldades.

O doloroso jogo ensina? Depende do jogador. Para mim, mostra que a vida pode ser bem curta e deve ser aproveitada com prudência para que renda mais. Mostra também a fragilidade e impotência da humanidade. Mas para chegar a estas constatações, eu não precisava passar por tanto sofrimento. Talvez o mérito maior da experiência seja servir de exemplo para que outras pessoas evitem entrar neste jogo. Não acredito na frase conformista “todos irão pegar mais cedo ou mais tarde”, ainda mais com a perspectiva da vacina. Estou certo de que muitas pessoas inteligentes irão evitar enfiar as mãos em sacos repletos de “bolinhas de covid” e conseguirão esperar o lento processo de vacinação.

E que tudo isso um dia faça parte da história, sem cair no esquecimento.

Saúde para todos!

10 COMENTÁRIOS

  1. Dr.Anders Schmidt, desejo muita saúde e alegria numa vida longa e frutifera ao lado de sua familia, seus queridos, e sempre encorajando seus alunos.
    Desejamos a vocês muitas e muitas voltas completas ao redor do sol, sempre com saúde.
    Com forte abraço da familia Helmut Kossatz.

  2. Ótimo relato. Mostra a quem não “pegou” o covid, o lado ruim da história. Eu graças a Deus quando tive, tive sintomas mais leves e não precisei ajuda hospitalar. Eu vejo pela minha região, que as pessoas estão cansadas de ficar em casa, cansadas de esperar pela vacina, cansadas de tudo isso, e aí acabam cedendo a algumas aventuras, festas, convívio com mais pessoas e aí acaba acontecendo, como descreveu no relato. Tomara que tudo isso passe o mais breve possível.

  3. Prezados. Obrigado pelos comentários. Sei que realmente muitas vezes é inevitável se expor. O desafio é reduzir ao máximo (possível) o risco de entrar no jogo, evitando exposições desnecessárias e tomando todas as medidas de proteção. Quanto ao cansaço, que de fato bate, temos que respirar fundo e supera-lo, pois são nossas vidas que estão em jogo. Força e saúde para todos!

  4. Olá amigo Anders? !

    Somente agora, consegui terminar de ler o seu texto…

    No dia que vc publicou aqui no grupo eu tinha recentemente recebido a minha “bolinha positiva” desse jogo cruel…

    Já no início comecei a me identificar com seu relato e assim… tive medo de continuar lendo!!!!??

    Por sorte, minha bolinha chegou quando eu já tinha três semanas vacinada com a segunda dose!!!?
    Com toda certeza, a vacina mudou minha sorte!!!??????

    Mas o desespero e as incertezas continuaram imensas, afinal, toda minha família (duas filhas e o marido) estava infectada…

    A vacina mudou a sorte do meu pai, de 82 anos, também… Nem sintomático ele foi, mas mesmo assim, meu irmão veio buscá-lo e ele está lá hoje, ileso!

    Hoje estamos no décimo quarto dia de sintomas leves.
    Meu marido foi o que mais sofreu com dores nas costas e febre, mas se recusou a usar o oxímetro (mais uma coisa desesperadora), uma vez que somente iria para o hospital, caso começasse a faltar o ar.

    E para nossa sorte, nosso jogo foi mais brando… Ninguém apresentou dificuldades respiratórias e espero que já estejamos realmente no final, sem nenhuma baixa!

    Que todos tenham seus jogos, pelo menos amenizados pela vacina!!!! Não há outro caminho!!!??

    Culpa? Nenhuma… A probabilidade de ser infectado, especialmente no Brasil, é injustamente e infinitamente superior!!!

    Fiquem bem, meus amigos!????

    • Amiga Elenice! Seu relato traz duas mensagens MUITO importantes: 1- a vacina pode salvar vidas e 2- mesmo após tomar a vacina temos que continuar nos cuidando. Saúde para vocês!

  5. Relato excelente! Infelizmente muitas pessoas não se preocupam com o tal do covid, embora também, nem todos que tiverem ele ficarão mal, assim como, tem todos sobreviverão. mas é tempo de nos cuidarmos, pois, embora a vacina esteja em curso, ainda deve demorar até todos serem imunizados.

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