Seria (a princípio) um sábado para não se fazer absolutamente nada, até o Groselha me ligar perguntando se não poderia ficar com o Groselhinha, pois precisava ir com urgência para Minas.
Fiquei aguardando ao portão já que deixaria o menino na esquina para não perder tempo. Não demorou e o garoto desceu do carro enquanto seus pais me acenavam. Já na primeira casa do quarteirão ele teve a infeliz ideia de apertar a campainha e correr (sabe como são as crianças), mas justo em casa de dona Amélia (mulher que batia de verdade) que estava saindo para varrer a frente da casa. Antes que pudesse saber o que o atingira, foram três vassouradas daquelas.
Na corrida foi acertado no rosto por uma destas janelas (antigas) que se abrem “de repente” para fora, mas não havia tempo para discussão pois dona Amélia ainda proferia hostilidades. Foi aí que recebeu um balde d’água nos pés, que uma doméstica usava na limpeza da calçada. Mais alguns metros e estaria seguro, mas antes, ao passar em frente da padaria aonde descarregavam sacas de farinha, recebeu uma “chuva” de trigo, sem que o sujeito percebesse sua presença ao varrer a carroceria do caminhão.
Assustado e um bocado feio chegou, enfim. Fico imaginando se conseguiria sobreviver caso eu morasse no final do quarteirão. Já no primeiro degrau da escada, um tropeço e uma cabeçada no chão. Pouco depois perguntei se não gostaria de fazer uma caminhada ou ir à algum lugar, mas me disse que preferia ficar em casa (o que era compreensível). Lembrei-me então que não tinha nenhum brinquedo, a não ser um velho (e quebrado) autorama.
Acabou se interessando e disse que o consertaria, desistindo logo que recebeu um choque. Bem… poderia brincar com outras crianças que moravam ao lado, embora fossem menores. Aceitou e fomos ao vizinho, onde ficamos (exatos) quatro minutos, pois apanhou da menina que tinha metade de sua idade.
De volta em casa resolvi fazer alguns lanches e ligar a TV. Me parecia seguro. Ao me ajudar, ele conseguiu cortar o dedo ao abrir os pãezinhos e em seguida queimar a língua com o lanche ainda quente. Ao sentar-se no sofá, todas as emissoras estavam “fora do ar”. Decidiu então tomar um banho e tirar uma soneca, já que havia acordado muito cedo.
Além de um choque no chuveiro, a fechadura quebrou e não conseguíamos abrir a porta, de nenhum dos lados. Foi preciso localizar um chaveiro, o que demorou um bom tempo. Resolvido o problema não tinha mais sono. Fomos então a uma lanchonete, tendo o cuidado de irmos na direção oposta à casa de dona Amélia.
Exceto pelo (picante) engano de colocar pimenta ao invés de cat-chup na pizza, tudo correu bem. Então aproveitamos para trocar ideias. Ele estava namorando (firme) e contou-me que ela era cabeleireira. Sem dúvida os tempos são outros, mas por mais jovem que ela fosse, ele tinha apenas sete anos e eu já pensava em tocar no assunto com seu pai.
Um pouco mais de conversa e a prova de que não se deve tirar conclusões precipitadas: ela também tinha sete anos e ajudava a mãe a montar brinquedos para uma fábrica. A menina cuidava justamente dos cabelos das bonecas…
Ele se achava um menino de sorte (por ela) e já faziam planos para o futuro. E, por coincidência, a menina entrou na lanchonete, juntando-se a nós. Era realmente bonita mas… parecia-me um tanto… “sofrida”.
Disse-me que quebrara o braço numa queda na escola; alguns dedos foram “costurados” na máquina das bonecas; os dentes que faltavam ficaram na quadra de esportes; a queimadura seria por ter encostado num cigarro; o rosto arranhado pela reação de um gato; o galo pelo balanço quebrado, o corte no pé por andar descalça (sem contar a língua mordida enquanto falava) e aquilo tudo, em menos de três dias.
Decidi então que realmente deveria conversar com o Groselha.
Autor:
Miguel Arcangelo Picoli é autor do livro Momentos (contos) e Contos para Cassandra (em homenagem à escritora Cassandra Rios).