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domingo, 25 de agosto de 2024

Heranças

Não nos damos conta disso, mas somos um amontoado de heranças. Todos que passaram por nós nos deixaram um legado, pequeno ou grande, de falecidos ou fantasmas, sumidos ou abduzidos. Cada um que cruzou nosso caminho contribuiu com uma pecinha desse grande quebra-cabeças que somos nós.

Nossas memórias são produtos dessa herança. As avós, essas são responsáveis por uma parte tão boa, aquele cheirinho de bolo assando (e quando podíamos lamber a tigela com aquela massa crua cremosa e docinha? Era o auge!), as tardes de verão regadas a banho de mangueira, as goiabas colhidas no pé, os doces fora de hora… Minha avó paterna era extremamente permissiva, e, todos os anos, naquela semana de férias na casa dela, eu me perdia no paraíso. Grandes heranças sensoriais foram recebidas da matriarca da família, que pedia para não contar aos meus pais o que acontecia durante aquele período mágico.

Já a materna, só fui conhecê-la aos 15 anos, sem nenhuma intimidade nem histórias em comum. Acredito que ainda esteja viva, e o que me deixou de herança foi um vazio de não ter conhecido-a.

Minha convivência maior foi com a bisavó, que criou minha mãe. Ela, mais velha que a outra avó, necessitava de maiores cuidados, tinha baixa visão e pouco eu convivi, pois morava no interior, enquanto eu e a paterna vivíamos na cidade. No geral, tínhamos pouco contato com a família da minha mãe por morarem longe.

Outras heranças marcantes, talvez as mais marcantes, dependendo da nossa idade, são as heranças de relacionamentos passados, amores vividos e sofridos, paixões avassaladoras e efêmeras. E, quando um casamento de longa data se faz passado, então teremos muito mais heranças do que qualquer outras da infância.

Quando as relações terminam, queremos esquecer tudo que aconteceu, o ruim e o bom, na verdade só nos lembramos do ruim, para abafar o bom. Que grande bobagem e desrespeito com nós mesmos estamos cometendo!

Esquecemos que fizemos determinadas escolhas baseados nos conhecimentos e heranças que tínhamos no momento. Era o melhor que podíamos na época. E há um outro detalhe, que só descobrimos com o tempo, que as pessoas em tenra idade têm o costume de interpretar personagens, de esconder seus verdadeiros eus por vergonha ou desconhecimento mesmo. Quando, na maturidade, conhecemos pessoas no mesmo momento de vida que nós, é muito diferente, assumimos quem somos e, se não gostar, outros irão.

Um livro indicado, uma música até então desconhecida, novos sabores… É uma infinidade de heranças deixadas por nossos parceiros, que esquecemos que não faziam parte de nós antes dessas relações, e que não nos imaginaríamos sem esses pedacinhos no momento atual. Renegar essas memórias é renegar nossa identidade.

E é disso que somos formados: vários pedacinhos de outras pessoas, que receberam de outras pessoas, e vieram de outras… Mas, há um detalhe importantíssimo não citado até o momento, que é o fato da significância dada por nós a esses pedacinhos. O quanto significou no momento, o quanto significa hoje e o quanto significará amanhã.

Autora:

Alice Ribeiro Paz da Rosa

17/07/2023

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