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sexta-feira, 22 de novembro de 2024

Terreno na Praia

Três da manhã era um bom horário para se ir ao (extremo) litoral Sul. “Programa de índio”, era verdade, mas para que servem os amigos? Groselha e sua esposa passariam para me apanhar e iríamos limpar um terreno de sua avó, interessada em vendê-lo. Coloquei minha roupa de guerra e o restante seria por conta dele.

Na hora marcada lá vinham eles, com a velha brasília, alguns lanches, um galão d’água e outro de gasolina (?). Até então não sabia que os (três) cachorros iriam e… comigo, no banco de trás. Assim começava a se desenhar meu dia de cão com aquelas pragas que não paravam quietos. Achei que depois de uns 300 KM sossegariam, mas que nada. A volta foi igual.

Na metade do caminho já me parecia com um carneiro, tamanha a quantidade de pelos grudados em mim. Além disso o Grosa enquanto dirigia apenas dirigia e sua esposa era de pouquíssimas palavras. Sem rádio, foi uma eternidade. Antes de sairmos de Itatiba, Grosa me disse que na última vez em que estivera lá, o local era um matagal completo. Este dia deveria ter sido o anterior pois era um abandono só, exceto por um único terreno em toda aquela imensidão pronto para construir, ao fundo do lote.

Bem, era só entrarmos e “molhar a camisa” com as enxadas que estariam num quartinho de madeira bem na divisa com o outro lote. E não é que o Groselha quebrou a chave no cadeado antes de abri-lo (é claro)? Resolvemos estourá-lo e comprar outro. Enquanto sua esposa ia à civilização comprar o cadeado fomos ver as ferramentas, mas não havia nenhuma.

Esperar pela volta do carro iria demorar, então Groselha resolveu usar gasolina. Como ele tinha experiência em trabalho no campo fiquei tranquilo, até ver o quartinho em chamas desabar no terreno vizinho. Pior: o fogo se alastrara na mata seca e precisamos nos desdobrar para contê-lo. Demorou e foi difícil. Ao final parecíamos bacon.

Grosa disse que o importante era o terreno estar limpo, assim jogou os mourões tostados no lote ao fundo e quanto ao quartinho… bem, o terreno seria vendido mesmo. Começamos a sentir falta dele com o tempo se fechando. O temporal não tardou e foi “daqueles”, sendo que não tínhamos aonde nos abrigar.

Passada a chuva, encharcados resolvemos seguir para a cidade, preocupados com a demora da mulher. No caminho, uma viatura da polícia. Até pensamos em pedir carona, mas nem foi preciso. Fomos detidos por invasão, danos a propriedade e incêndio criminoso. O Groselha havia se enganado de endereço!

Na delegacia, encontramos a esposa. Ela não conseguira mais voltar ao lugar e havia ido pedir ajuda da polícia. Não foi nem um pouco fácil, mas conseguimos nos explicar. Mais que cansados, passamos a noite na brasília com os cães (que já haviam comido os lanches), já que os trocados do Grosa iriam para o gentil proprietário do lote.

De manhã, fomos procurar pelo (verdadeiro) terreno. Era justamente aquele aonde havíamos jogado os mourões… a imobiliária já havia cuidado da limpeza e colocara uma placa, ou seja, fizemos a viagem à toa. Tudo em ordem, era hora de voltarmos, mas o combustível acabou perto dali. Como voluntário, peguei o galão de água (já que o de gasolina havia se queimado) e fui até a cidade buscar combustível.

Cara, que longe… mais uma longa caminhada de volta e cheguei até eles. Abastecidos, já íamos chegando (de novo) à cidade, mas uma viatura da polícia nos acompanhou… até o (verdadeiro) terreno para limpá-lo. Um pedido (justo) da imobiliária.

Novamente estávamos de volta à estrada. Mais algumas (longas) horas de silêncio (e “lep-leps”) e finalmente poderia matar a fome, sede, sono, vontade de chorar, cansaço e aquele banho. Mas o Grosa é destas pessoas que realmente nos surpreendem quando menos esperamos, ainda mais dando carona a um… caranguejeiro… (seria ele descendente de Noé?). Nada pessoal não fosse o caos que se instalou à minha volta com três cães e dezenas de crustáceos.

Meu Deus! Pensei em burlar um certo Mandamento, mas daria trabalho sumir com 5 corpos e um veículo. Por sorte o tal homem logo desceria, não sem antes um dos cães aproveitar para fugir e demorar horas até ser recapturado. Minhas lágrimas, enfim, vieram abaixo.

Depois disso tudo transcorreu bem. Já na metade da estrada de Jundiaí a Itatiba a brasília “parou”. E na pista. Com sorte conseguimos levá-la ao acostamento.

— E agora?

Simples, disse a mulher:

— Tenho uma tia que mora aqui perto.

Temendo mais problemas disse-lhes boa noite (sabia que não iriam reparar) e vim à pé até Itatiba. Foram mais quatro horas até chegar (vivo) em casa. Ainda beijava o tapete da sala quando o telefone tocou. Era o Grosa… “se eu quisesse” ele estaria descendo a serra no domingo. A tal tia havia se interessado pelo terreno.

Miguel Arcangelo Picoli é autor do livro Momentos (contos) e Contos para Cassandra (em homenagem à escritora Cassandra Rios).

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