A pedido da mãe de Groselha, fomos fazer uma visita a um de seus irmãos que há muito não via e para com quem tinha muita “pensão”. Aproveitamos um final de semana e uma nova linha de ônibus com trajeto direto de Itatiba à tal cidade de Minas, sendo que ele residia num sítio. Não sabíamos o que levar, já que a casa não tinha energia elétrica. Mais tarde veríamos que não era mesmo preciso levar nada. Apenas saber aproveitar tudo que trouxemos conosco.
Paramos na primeira propriedade para nos informar, aonde fui confundido com São Sebastião e atingido várias vezes por meninos que brincavam de “arco e flecha”. Groselha não teve melhor sorte e virou boneco de “vodu” com lanças improvisadas. Felizmente não doeu (muito). Um dos garotos mandou (!) que aguardássemos para falar com alguém da casa pois havia dois cães (Branco e Preto) sendo o primeiro muito bravo (por que, então, prenderam o Preto?!).
Bem, entramos e nos disseram que o “seu Rique” morava no sítio vizinho, quatro quilômetros dali. A casa ficava bem próximo da estrada com uma cerca em toda sua volta e ali também fomos recebidos por crianças (estas civilizadas). Pediram que entrássemos e aguardássemos enquanto iriam chamá-lo. Durante a espera chamei a atenção de Groselha para o esmero da cerca de bambus. Uma perfeição! A horta era variadíssima, muito bem cuidada e de deixar qualquer um com água na boca.
Atrás da casa uma grande quantidade de lenha já cortada para o fogão, além de um galinheiro muito bem construído, mais afastado. Demorou, mas o Tio apareceu. Lembrava o Urtigão, das histórias em quadrinhos, mas somente pela longa barba, chapéu e pés descalços. Sujeito sereno, pacato, e apesar da aparência frágil ainda sinto dores na mão, depois de cumprimentá-lo.
A demora foi “justificada” pela idade avançada embora isto não fosse visível. Já no interior da casa serviu-nos café (plantado, colhido, torrado e moído por ele mesmo) e bolo de fubá (deliciosos!). E aí fomos conversando até o entardecer. Foi quando pediu-nos licença para “banhar” as crianças menores e preparar o jantar. Vários caldeirões já continham água (da mina) quente para atendê-los. Mais tarde ao perguntar pelo restante da família soubemos que entre “mortos e fugidos” ele ficou (só) com os bisnetos e isto já fazia algum tempo. As crianças eram saudáveis, tinham educação e comportamento exemplares e não lhes faltava nada.
Nenhuma delas (apenas uma já ia para a escola) ia para a cama sem banho ou escovar (bem escovado) os dentes. Ele próprio lavava, costurava e passava as roupas, cuidava da casa, da horta, da criação. Cortava-lhes o cabelo e eram muito felizes com ele. Pareciam uma extensão das virtudes do bom homem. Para nossa alegria uma salada daquela horta maravilhosa faria parte do jantar, com virado, arroz e ovos. Após a refeição as crianças ainda brincariam um pouco com sementes de árvores, saquinhos de areia, carrinhos de madeira e flautas de bambu, tudo trazido ou feito pelo bisavô (que brincava junto sempre que podia).
Na hora dos pequenos irem para a cama, acontecia o que mais adoravam e ansiavam: Rique contava (de forma realmente especial) histórias interrompidas somente quando todos adormeciam. Grosa e eu perguntamos (ao mesmo tempo) como aquela história terminava e para nossa surpresa, não tinha fim…
—Vou contando até que durmam, não importa o tempo que demore.
Ou seja, ele as inventava e as desenvolvia na hora. Nunca precisou (ou não quis) terminá-las, então os finais não eram conhecidos.
Já de volta ao fogão preparava a polenta para o café da manhã. Dormimos em redes na varanda e em meio a vagalumes, sons de grilos, sapos… e sem direito a histórias, um dos prazeres que, como adultos, só podemos (e felizmente) conceder. Logo pela manhã fomos ver o poço que estava cavando (daí a demora no dia anterior) num sítio ao lado. Assim ele sustentava a família, além de serviços gerais e alguns alimentos que produzia e vendia na cidade. Mais rápido que descer ao fundo do poço somente para subir em enormes abacateiros… surpreendente!
Já de volta pela poeira aonde havia um pouco de estrada disse ao Grosa que Deus e seu tio sabiam que ele não poderia adoecer ou faltar. Não até que o soubesse. Do contrário aquelas crianças não seriam tão bem cuidadas. Durante o tempo em que ficamos ali não ouvimos uma queixa sequer de alguém que consagrava e dividia sua vida ao trabalho e às crianças. Tudo muito simples mas suficiente (e belo!).
Grosa preocupava-se apenas com o amanhã daquela família. Tudo estava em ordem mas também era tudo muito incerto.
— Como isto vai terminar?
Não tínhamos como conhecer o final. Aquela, era uma história do tio Rique.
Autor:
Miguel Arcangelo Picoli é autor do livro Momentos (contos) e Contos para Cassandra (em homenagem à escritora Cassandra Rios).