Os ininterruptos dez dias (e noites) de chuva na praia já faziam parte do passado. Estávamos quase chegando à cidade e em poucas horas estaríamos no festival de rock! O ingresso era um tanto quanto caro, mas além de beneficente seriam cinco ótimas bandas se apresentando, e ao final, Os Miseráveis e O Barco Bêbado tocariam juntas!! Deixei Groselha com a esposa em sua casa, e nos encontraríamos no clube, pois ele sempre se atrasava e eu queria ver todas as bandas do começo ao fim. A única incumbência dele era entregar a chave do apartamento na imobiliária para não pagarmos uma taxa a mais, já que havia data e horário para a devolução.
Em casa, após o banho e um prato ecumênico (toda sorte de alimentos encontrados, reunidos), escolhi minha camiseta, peguei o ingresso e fui para o show. Demorei um pouco para estacionar (estava apinhado!), fui logo entrando e enquanto descia pela rampa de acesso tive a impressão de ter visto o Groselha (ou alguém muito parecido com ele) sendo conduzido por seguranças para fora do local, na rampa paralela, também ao ar livre.
Com sede, achei melhor entrar na fila do bar e comprar logo muitas fichas de cervejas. Não poderia ser ele… Como teria chegado tão rápido se costumava se atrasar? Ou poderia? Achei melhor tirar a dúvida. Saí da fila, subi a rampa, e do portão de acesso pude vê-lo, do outro lado da rua. Dali o chamei várias vezes, mas não me ouviu. Resolvi sair e ver o que havia acontecido. Devido ao calor, havia tirado a camiseta nas dependências do evento, o que era proibido, e não tinha mais grana para entrar novamente.
Não daria para ficarmos lamentando. Comprei outros dois ingressos e entramos. Voltei (com mais sede) à imensa fila do bar, enquanto ele disse que iria se refrescar. Muitos minutos se passaram, e tive a impressão de ter visto o Groselha (ou alguém parecidíssimo com ele) sendo levado por seguranças até a saída… É, poderia, sim, ser ele. Hesitei um pouco, mas decidi deixar a fila e ir até o portão.
Novamente ele estava lá fora, desolado, encharcado, e provavelmente surdo também. Outra vez tive de sair e ir até onde estava. Dessa vez havia entrado na fonte, o que também era proibido. Bom… Tanto tempo aguardando pelo festival… Comprei outros dois ingressos e combinei com ele: em caso de nova expulsão, deveria permanecer em frente ao portão! A segunda banda já estava no palco, e ainda não havíamos chegado lá, mas estávamos na (quilométrica) fila do bar quando o serviço de som anunciou que um molho de chaves tinha sido encontrado, o que me lembrou de perguntar a ele se havia passado na imobiliária. Para minha surpresa disse que não a devolvera, porque a perdera quando pegou o celular no bolso e ela caiu numa boca-de-lobo. Sabia que não ficaria tranquilo se não tentasse ao menos recuperá-la. Saímos (com muita, muita sede) da fila e do local.
Fomos até meu carro e até a rua em que havia perdido a chave, onde havia uma alcateia de bocas-de-lobo e (é claro!) ele não tinha certeza em qual delas havia caído. Bem, pelo processo de eliminação, na quinta (e última) avistamos a chave. Foram necessários alguns números de contorcionismo e muitas improvisações, mas a recuperamos e a devolvemos na imobiliária (lógico, com uma pequena taxa adicional pelo atraso).
Voltamos ao show e a terceira banda já se apresentava. De volta à (imensurável) fila do bar, ele atendeu o celular. Era Minalba, pedindo-lhe que voltasse com urgência para casa, mas não havia como ouvir direito a ligação. Parecia sério, e resolvi ir com ele. Saímos da fila (com sede extrema).
Chegamos, fui logo me sentando, e a urgência era levar o cachorro ao veterinário, pois considerava que ele estava muito obeso, já com dificuldade respiratória, e assim correndo risco. Por ser “da família” tive a liberdade de dizer que o cão não ficou com sobrepeso da noite para o dia, o que significava que isso poderia esperar até a semana seguinte. E aproveitei para perguntar onde ele estava.
— Está sentado sobre ele, me disseram.
Cara, que susto!! E que cachorro enorme, redondo, gordo, obeso!!
Felizmente ele caminhava sozinho e ainda cabia em meu carro. Fomos à clínica. Notei que o veterinário usava uma camiseta da banda Motorhead sob o jaleco. Perguntei-lhe se iria ao festival e me disse que já era para estar lá, não fosse estar nos atendendo… (glup!). Bom… cachorrão com dieta em casa, voltamos ao show. A quarta banda se apresentava, mas tínhamos de pegar cerveja, e voltamos à fila. Quando já nos aproximávamos do bar, um conhecido nos pediu para fazermos uma “entrega em domicílio”, pois seu irmãozinho havia passado mal e estava desacordado.
Sim… Com imensurável sede saímos da fila e do local para levar o cara apagado e descobrimos que ele morava um bocado longe. Demorou até voltarmos ao evento. A tão esperada apresentação estava rolando, mas tínhamos de celebrar com uma cerveja, ao menos. Para nossa surpresa não havia fila, mas também não havia mais bebida. Decepcionados, rumamos para o palco e pudemos ver e ouvir os agradecimentos dos integrantes das duas bandas, organizadores, representantes das entidades beneficiadas…
Desapontados, após comprarmos dez ingressos (nove pagos por mim), sem termos visto nenhuma das bandas e não tomarmos uma cerveja sequer, sugeri algum bar. E… Não é que estávamos sem gasolina? Caminhamos até o posto, voltamos ao carro e aí achei melhor irmos para casa, afinal lá eu tinha os CDs das duas bandas, e cerveja “ao ponto”. Mas… ao chegarmos descobrimos que a rua estava sem energia elétrica havia horas! Assim, não seria possível ouvir os CDs, e a bebida estava quente.
Achei melhor levá-lo e encerrar o dia, pois estávamos exaustos e desapontados. Foi aí que Groselha tirou do bolso um folheto que havia recebido no evento: um festival punk rolava na cidade vizinha. Não tivemos dúvida: iríamos para lá naquele momento. Voltamos a respirar! De saída, o carro não ligava, o que nos atrasou meia hora, mas depois de rodar um pouco (e trocar um pneu), chegamos. O clube estava abarrotado! O esquema era simples: para não perdermos tempo eu iria para a fila do caixa logo na entrada, e Groselha para a fila do bar, no fundo. Enquanto aguardava a (lenta) fila andar, tive a impressão de ter visto Groselha (ou alguém muito parecido com ele) sendo conduzido para fora, por seguranças…
Autor:
Miguel Arcangelo Picoli é autor do livro Momentos (contos) e Contos para Cassandra (em homenagem à escritora Cassandra Rios).