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domingo, 17 de novembro de 2024

(Doce) Aprendizado

Sempre ouvira (muitas) coisas sobre hábitos que se adquire na velhice. Manias, melhor dizendo, quase nunca toleradas ou compreendidas por familiares e amigos que não encontram explicação convincente para o que não compreendem, e que na verdade é muito simples: as pessoas continuam vivendo, portanto aprendendo e consequentemente mudando. Ao menos no meu caso sei exatamente a origem de meu (doce) aprendizado. Enquanto me dirijo à escola (sim, estou caminhando em direção a ela) me lembro de minha filha, quando garotinha. Não sei se algum dia (de todos em que a deixei na escola) conseguimos chegar antes da hora ou, no máximo, em cima dela.

Por mais que eu fizesse para ganhar tempo ela conseguia me atrasar. Coisa de mulher (creio eu). Antes de sairmos de casa ela (e somente ela) “tinha” de embrulhar num pequeno pedaço de papel uma gominha, uma pipoca, uma balinha ou qualquer outra guloseima. Normalmente o pacotinho não ficava “bonito” e então era desembrulhado e refeito quantas vezes fossem necessárias até que ficasse “lindo”.

Fazer o quê?! Pouco antes de chegarmos à escola eu precisava estacionar e acompanhá-la até o portão de uma casa onde um pequeno cãozinho a aguardava. Ao ver o carro ele apenas ficava atento, mas quando eu abria a porta e ele a via, a cauda parecia que iria se desprender, tamanha agitação.

Depois de algumas palavrinhas (as quais nunca entendi) e um agradinho no focinho, ela desembrulhava (lenta e vagarosamente) o que havia levado para ele e aguardava (o triste era quando estava chovendo e eu precisava segurar o guarda-chuva) até que comesse. Ela cresceu e eles já se viam pela janela do carro, o que acelerava o “batimento caudíaco”, mas o ritual do desembrulho sempre foi lento. Coisa de criança (creio eu).

Sempre nos demos (muito) bem, mas os filhos crescem, conhecem pessoas, se apaixonam, formam outra família e se vão, às vezes para bem longe dos pais. Morando há muito no exterior, nos comunicávamos por cartas ou telefone. Certo dia ela me ligou dizendo que não suportava mais a saudade. Escrever e ligar não eram mais suficientes, mas uma viagem ao Brasil estava fora de suas possibilidades. Choramos (fazer o quê?!).

Naquele dia perguntei-me que outras coisas eu queria poder fazer (no fim) da vida, que realmente valessem a pena serem feitas. Uma (inimaginável) viagem ao exterior foi a resposta. A (breve) viagem custaria minhas economias, um empréstimo no banco e meses de bolsos vazios. Mas ela não precisaria saber disto (coisa de pai, creio eu). Sem saber uma única palavra no idioma estrangeiro e se sobreviveria ao medo de avião embarquei com a certeza de que tudo valeria a pena.

Somente após o desembarque e ainda no aeroporto liguei para ela, como se estivesse em minha casa, dizendo que iria vê-la. Incrédula, perguntou-me quando e num silêncio repentino a ouvi chorando (junto comigo). Cheguei logo ao seu apartamento, que continuava exatamente como nas fotos. Não sabia se estávamos chorando de novo ou ainda, mas revê-la, abraçá-la, abençoá-la foi algo divino. Algo que somente pais e filhos podem sentir.

Tomamos café e logo era hora de buscar a netinha na escola, perto dali. Fomos a pé, de mãos dadas, conversando e matando as saudades. A menina lembrava muito sua mãe, e finalmente a conheceria além das fotografias. Novamente não contivemos as lágrimas.

À noite revi meu genro e fiquei feliz por estarem todos bem. Extremamente cansado fui dormir e no dia seguinte aproveitaria para conhecer alguma coisa na cidade com ajuda de minha filha. Sabia quais imagens havia levado em minha mente, mas não quais traria de volta comigo, e isto era importante porque aquilo não mais se repetiria. Jamais voltaria àquele país e talvez não nos víssemos novamente, nunca mais. De manhã iria levar a garota à escola. Apreensivo, olhei o relógio com receio de nos atrasarmos, mas quando a vi, tive certeza de que o atraso seria inevitável. Com a paciência que Deus lhe deu, embrulhava vagarosa e caprichosamente um amendoim num pequeno pedaço de papel.

Esta imagem, dentre outras, trouxe comigo. E fazer o quê com a experiência de (tanto) ver pequenas guloseimas serem embrulhadas num papelzinho? Claro, “entrei no time”. Já estou próximo da escola e posso ver (hoje não esqueci os óculos) outro cachorrinho abanando a cauda. No cardápio de hoje, uma gominha alaranjada (sua preferida).

Autor:

Miguel Arcangelo Picoli é autor do livro Momentos (contos) e Contos para Cassandra (em homenagem à escritora Cassandra Rios).

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