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quinta-feira, 14 de novembro de 2024

FusCão

O primeiro carro (com certeza) a gente nunca esquece. Demorou um bocado, mas minhas economias coincidiram com o valor de um fusca 72 e o negócio foi fechado rapidamente (sempre ouvira dizer que demorava). Nunca fui apaixonado por carros, mas estava eufórico com a aquisição e aguardava os primeiros comentários para enfim poder conversar sobre este assunto com os amigos, velhos entendidos em motores, peças, acessórios, marcas e modelos. Após estacioná-lo em frente de casa resolvi passar um pano nos vidros.

O filho (chato) de meu vizinho foi o primeiro a se aproximar, ainda de pijama e comendo um pãozinho com manteiga. Quando me perguntou se era um Dálmata, parei de limpar o para-brisa para ver o tal cachorro. Percebi então que ele se referia ao carro (branco) com muitas manchas de funilaria. Respondi-lhe que sim (e com pedigree!!), mas que infelizmente era dócil. Funcionou e ele caiu fora mas mal voltou para dentro dois conhecidos se encontraram e pararam para uma breve conversa, sendo que um deles colocou o pé num dos para-lamas. Enciumado (devo admitir) pedi licença dizendo que iria “jogar uma água”.

Fui atendido e satisfeito passei para o vidro traseiro no que fui interrompido por um ex-amigo (era amigo até então) que, sem dizer nada me entregou um cartão de uma oficina com serviço de remoção de veículos. Enquanto isso o cachorro (chato) do vizinho demarcou seu território em duas das rodas. As dezenas de outros cães, digo, veículos estacionados na mesma rua foram poupados.

Já aborrecido, resolvi levar o Dálmata, digo, fusca para alguém que ficasse contente comigo quando o visse. Antes de sair, pelo telefone Groselha me disse que passaria em casa para deixar umas ferramentas que havia emprestado e depois iria à uma oficina verificar os freios de seu carro. Aguardei e… de fato ele estava sem freios… o que me custaria uma mancha a mais em meu cão, digo, fusca. Fiquei na expectativa… o que ele diria?! Para minha decepção, apenas perguntou por que havia passado manteiga no retrovisor.

Bem… minha mãe com certeza ficaria feliz. Afinal, era mais por ela que adquiri o veículo, podendo agora levá-la a passeios. Entrei, mostrei-lhe as chaves e disse que fosse vê-lo na rua. Voltou dizendo que não havia nenhum carro lá. Preocupado fui conferir e… lá estava ele. Percebi que esperava por um veículo mais novo e moderno. Meu cachorro, digo, fusca, não fora aprovado.

Chegando em casa nem tirei a placa de “vende-se”, mas precisei chamar um veterinário, digo, chaveiro por haver fechado a porta com as chaves no contato. Sempre pensei que isto não fosse muito comum… Nos meses seguintes uma sucessão de visitas à oficina e problemas com multas aplicadas em locais em que nunca estive passeando com meu animal, digo, carro, sem contar a necessidade frequente de balancear as patas, digo, rodas. Bem, o tempo passou e meu velho e fiel FusCão continua comigo, apesar da placa de vende-se nunca ter saído do vidro traseiro. De fato encontrei uma sarna para me coçar. Afinal… quanto tempo vive um Dálmata?

Autor:

Miguel Arcangelo Picoli é autor do livro Momentos (contos) e Contos para Cassandra (em homenagem à escritora Cassandra Rios).

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