Tecendo apontamentos históricos sobre o movimento da negritude, o artigo “Movimento da negritude: uma breve reconstrução histórica”, de Domingues, trata da evolução do conceito fora e dentro do Brasil, mostrando também seus aspectos positivos e negativos.
Recentemente tem abarcado os caracteres políticos, ideológicos e culturais. Pelo primeiro, foca-se na ação organizada do movimento negro; pelo segundo, entra em cena a consciência racial, e pelo último, valoriza-se as manifestações culturais que relacionadas à África.
Nascido fora da Europa, o movimento da negritude teve no início um papel revolucionário, rompendo com o eurocentrismo. Com o tempo, pela sua ampliação e conotação mais política, deixou a transformação de lado e mergulhou em contradições.
O afro-americano W. E. B. Du Bois é o patrono do pan-africanismo, movimento político e cultural que lutava pela independência de colônias africanas e sua unidade. Defendia o orgulho racial e a volta às origens negras. Seu livro Almas Negras se tornou a bíblia do movimento Renascimento Negro, movimento literário e artístico voltado para exorcizar os estereótipos e preconceitos contra os negros, e que enaltecia a cor destes.
No Haiti, país em que, segundo Aimé Césare, a negritude se ergueu pela primeira vez, Jean Price-Mars ajuda a articular o movimento indigenista de reabilitação da herança cultural africana, com enfoque nas línguas crioulas e religião vodu.
Em Paris, no entreguerras no século XX, estudantes negros começam a questionar o centralismo da cultura ocidental focada na Europa, e procuram resgatar a identidade cultural dos negros.
Em 1932, estudantes negros antilhanos publicam uma revista (Legítima Defesa) denunciando a opressão racial, a dominação cultural colonialista e o mundo capitalista, cristão e burguês. Em defesa das origens da raça, faziam apologia da liberdade de estilo, forma e imaginação diante dos moldes franceses.
Em 1943, negros em Paris lançam a revista O Estudante Negro, contrária ao assimilacionismo das potências européias e defensora da liberdade criadora. Como instrumentos, o comunismo, o surrealismo e as raízes africanas. Lançavam mão de reuniões, exposições, assembléias, artigos e poemas, para expandir o movimento. Um dos seus diretores foi Aimé Césare foi criador do termo negritude, que surgiu em 1939 em um poema.
Inicialmente, o movimento era cultural, negando a política de assimilação. Em vez do dilema “embranquecer ou desaparecer”, enaltece-se a cultura de matriz africana. Para Aimé Césare, negritude envolve a assunção de ser negro e a consciência da identidade (orgulho da raça), história e cultura deste. Além da identidade, a negritude tinha os aspectos fidelidade (vínculo indelével com a terra-mãe) e solidariedade (união involuntária dos irmãos de cor para preservação de sua identidade). Já para Léopold Sédar Senghor, o negro tinha uma “alma negra” na psicologia africana: com natureza emotiva, há um essencialismo que contrapunha a emoção negra à razão grega; a vida, emoção e amor negros ao materialismo europeu.
Ao lado das outras propostas de ruptura relacionadas à negritude, veio o marxismo, focado na autonomia da consciência. Enquanto uma minoria buscou desatrelar a luta dos oprimidos das questões de cor, os demais buscavam uma consciência racial desligada da luta dos demais oprimidos do capitalismo.
Da emancipação da consciência passou-se à política. Depois da Segunda Guerra, começa a fase militante, focada na libertação das colônias africanas, na luta sindical, no anti-racismo e na poesia engajada. Nos anos 1960, o movimento se internacionaliza, alcançando o Terceiro Mundo. E após a emancipação política na África, a negritude permanece como ideologia principal na busca da unidade africana e seus projetos políticos.
No início, o discurso da negritude se voltava à elite colonial negra, que copiava o colonizador. Uma pequeno-burguesia negra, marginalizada racialmente e frustrada existencialmente, busca revalorizar sua identidade e voltar às raízes da raça. A negritude aparece como que uma segunda opção. Como uma reação de despeito.
Já Jean-Paul Sartre via uma progressão dialética nessas relações raciais, sendo o racismo a tese, a negritude a antítese ou transitório racismo anti-racista, e a unidade final a síntese, que aproximará os oprimidos no combate e superará a negritude em uma sociedade igualitária. Ao colocar em xeque o status quo racial, estar-se-ia sendo progressista. O colonizador estava no seio da África e a negritude não podia condescender com a discriminação, então restava a opção da repulsa bélica. No entanto, como a práxis tem mostrado, a visão do filósofo francês é considerada uma utopia, embora em comunicação com a dialética hegeliana e marxista.
Com o tempo, percebeu-se que apenas nostalgia e glorificação de um passado mítico não era suficiente. Entra em cena a ação: administração, política, luta e diplomacia. As contradições de classe, a manutenção do uso da língua do colonizador e o subdesenvolvimento econômico assumem a feição devida de inimigos.
Por outro lado, os marxistas criticavam a negritude por sua apologia às questões raciais em detrimento das de classe, o que dividiria a luta dos oprimidos e atrasaria a consciência na luta pela liberdade. Limitados à consciência racial, ficariam alienados das demais contradições sociais. Assim, o marxismo procura mascarar ideologicamente a opressão racial, criando um universalismo que esconde as especificidades da condição do negro.
Já no Brasil, o poeta Luís Gama é o precursor da negritude, aqui um protesto da pequeno-burguesia intelectual negra, uma resposta à assimilação da ideologia do branqueamento. No entanto, esse movimento francês chega ao país somente nos anos 1940, especialmente com o Teatro Experimental do Negro, que foi ampliando suas áreas de atuação, agregando à ideologia uma filosofia de vida. Contudo, não houve uma negritude explícita e sistematicamente formulada (ausência de propostas concretas e de projeto geral para resolver o problema do negro), mas mitos. O negro possuiria uma sensibilidade aguçada, o que reforçaria o preconceito intelectual de que eram vítimas.
Mais recentemente, o conceito de negritude popularizou-se, alcançando a tomada de consciência racial nos terrenos da cultura, religião e política. Hoje, negritude está presente em diversas manifestações lúdicas e estéticas de afirmação racial.
Inicialmente buscando resgatar a humanidade, combatendo o racismo colonial e valorizando a cor negada agregando-lhe traços de beleza, a evolução do conceito de negritude faz a pele extrapolar a idéia de “acidente genético”, atribuindo-lhe ética, estética, forma e substâncias específicas. Esse mito ou essencialismo acaba descambando para o transcendental ou trans-história, ensejando uma visão romântica e utópica de inocência e pureza. A partir de uma frustração literária de intelectuais africanos e antilhanos, o movimento chega ao Brasil. Ao tomar o discurso universalista, o deturpa por subtrair as identidades específicas de raça, classe ou nação, ocultando as diferenças, tornando invisível o “outro”.
Por fim, em 1947, publica-se a revista Présence Africaine, fundada por Alioune Diop, a qual se torna uma espécie de órgão oficial dos continuadores da negritude, agora focada na originalidade cultural africana. É um marco para se conhecer os conseqüentes da negritude, que, embora tenha revalorizado a herança ancestral, construído uma auto-imagem positiva e propiciado visibilidade ao negro, pecou por aumentar o preconceito atrelado a uma suposta incapacidade racional do negro em comparação com a do europeu, estimular uma prática revolucionária somente racial e não romper com a lógica da dominação imperialista.
Bibliografia
DOMINGUES, P. J. Movimento da negritude: uma breve reconstrução histórica. In: África: Revista do Centro de Estudos Africanos, São Paulo, n. 24-6, p. 193-210, 2004/2005.
Autor:
Hudieny Dias de Souza