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sexta-feira, 22 de novembro de 2024

O meu último cigarro, prometo

Olho para os céus.
Só por Deus
há consolo na insignificância.
Sou o pó da gaita furada
sendo arrastado no salão de taco e areia
e não sou nada além da vontade
de querer novamente o sinfônico reconhecimento
em cima do palco e da poeira.

Não serei nada
mais que a brasa
do meu último cigarro aceso.
Condeno o lugar acima da fumaça fugidia
e o que me resta é esparramar-me mecanicamente,
com desprezo pela rima e a métrica
que houvera guardado na minha cabeça,
antes de pensar em sentar nesta cadeira de praia
escondida atrás da mesa.

Escrevo
declarando ao mundo que não tenho razão para escrever estes versos.
O mundo que é,
até extrair-se toda a essência do cravo,
o oco entre as linhas de uma folha de papel almaço.

Tenho a prisão da linguagem
e a possibilidade da imaginação.
Venha, veja!
Tenho o teto cinza da minha casa,
os caibros rígidos
e o que mais penso em aproveitar acobertado
é o gole da cerveja.

Vangloriei o preço do trabalho e perdi todo o valor.
Meu pai construiu essa casa,
eu é que ponho significado nos tijolos.
Desde então, componho por força da nicotina
que a cada trinta segundos
força-me a empilhar um novo anseio.
Cerquei-me de significados
querendo libertar meu pensamento
com o fogo do isqueiro.

Cometi um dano à sua propriedade concreta, pai.
Vislumbro o teto dos céus procurando calor
e acho no bolso o cigarro.
Não é, o Senhor,
dono dos corações quebrantados?

Por que recorro aos mortos quando penso?
Porque há tantas vírgulas?
A morte põe humildade nas paredes
e cabelos brancos nos homens.
Meu pensamento não é próprio
quando sou eu mesmo o ator da minha própria
e única,
polimórfica vida?

Ando dois passos para trás, um para frente.
Ecoam as palavras que já foram ditas.

O que falta,
se não,
a conclusão
do poema com seus significados compreensíveis
e um ponto final
sentencial?

A convicção das minhas palavras
socorridas pela contradição corriqueira?
Orgulho, orgulho meu,
de revisar os versos já escritos
para encontrar novos sinônimos
e pensar em um futuro de sintaxes
que acompanham a minha digitação.

Vivem os poetas de rua e ecoam
os mortos na minha mente.
Reverbera a constatação de infelicidade
nos muros lineares,
enquanto psicografo
meu inconsciente.

Se eu casasse com a filha da minha vizinha, talvez eu fosse feliz.
Penso que faltou este conselho evidente para eu desistir
de declamar versos melancólicos
emanados por aspectos bucólicos.

Antes de sentar aqui,
desci a rua para buscar
motivos na mercearia da esquina.
O estimado vendedor me deu um conselho:
força de vontade!
Voltei para casa com três cigarros.

Reconheci no vendedor uma personalidade
idêntica à minha sombra.
Encontro-a à esquerda da cadeira de praia.
Derrotada,
como se soubesse a verdade nos limites da escuridão.

Agi com força de vontade
para achar as palavras certas
e encontrei-as
estampadas nos meus atos falhos.
Cri após uma oração estridente
sincopando minha culpa no ranger de dentes
e falhei.

Esqueço as rimas menos significativas
do que a frustração que me sepulta.
Sacudindo minha perna inquieta,
estou pensando
o que escreverei na lápide:
viveu feliz e aqui jaz um mentiroso.
Nada tão ordinário
nem muito maravilhoso.
Procurei a vida inteira
por livros na estante
e aqui estou morto.

Ecoa o tintilar da chuva no telhado
e a sensação de que tudo é sonho.
Recobro: dar dois passos para trás
e um para frente.

Escrevo,
declamo,
apago e acendo novamente,
defendendo quem aprende a expor suas vísceras
no palco
ou no armário de cabeceira,
o cigarro
fazendo subir a fumaceira.

Matei o ator da minha vida para pagar os três cigarros.

Sou um viciado em escrever
satisfeito com o silêncio,
mas ouço palmas!
“Ô de casa!” (grita o estimado vendedor de cigarros).
Levanto-me sem boquejar
a poesia das janelas de Fernando Pessoa.

Olho o movimento
que existe apesar dos carros que já passaram
e irão passar na rua
e aceno
para o homem com o seu guarda-chuva.

Invejo-o pela convicção que ofereceu
a solução dos meus problemas.
Invejo a sobriedade mercantilista.
Com ambiciosa esperança,
encheu os bolsos de sonhos alheios.

“Você esqueceu a sua identidade na mercearia, Bernardo”.

“Ultimamente ando do avesso. Muito obrigado”.

Ecoaram
pela minha testa molhada
as palmas
da plateia humanista
que não existia.

“O meu último cigarro, prometo”

Autor:

Bernardo de Miranda (06/03/2023).

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