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terça-feira, 3 de setembro de 2024

A taça de cristal

Capítulo Quarenta e Cinco

Fazia já uma semana que Ricardo retornara do hospital. Ainda estava de cama, mas já se sentia bem melhor. Conseguia, com certa dificuldade, caminhar entre o quarto e a sala e já fazia pequenas incursões até o quintal. Sendo cuidado por dona Olga e Roseli, ganhou um outro aspecto, mais sóbrio… quase lembrava o Ricardo de outrora… podemos dizer que a maior diferença entre este de agora e o de antigamente era, sem dúvida, o seu humor, que mudara drasticamente. Se antes era um rapaz alegre, comunicativo, agora era taciturno… vivia sempre de cara fechada, mal humorado… pouco falava, e quando alguém se dirigia a ele, costumava virar o rosto e não responder. Nem sua filhinha escapava de seu mau humor. E, por esse motivo, tanto dona Olga quanto a própria Roseli procuravam deixar a menina o mais longe possível do rapaz… sim, ele mudara muito… e não foi para melhor…

Após quinze dias ele já conseguia dar pequenos passeios. Estava afastado da bebida, pelo menos. Fazia quase um mês que ele não colocava uma só gota de bebida alcoólica na boca. Considerando que antes bebia de manhã até a noite, isso poderia explicar seu mau humor constante… era sua abstinência falando para mandar tudo para os ares e saciar aquela sede que o consumia por dentro. Mas estava conseguindo resistir à tentação. Não estava fácil, mas ele havia decidido que não se entregaria ao vício novamente. E como não poderia beber agora porque estava tomando remédios, havia decidido que não mais voltaria a beber mesmo quando não houvesse mais a restrição. Ia ser fácil… afinal, a parte mais difícil estava sendo agora…

A tarde estava agradável, e Ricardo sentou-se em um dos vários bancos da praça. O movimento estava tranquilo. Ele limitou-se a ficar observando o que acontecia ao seu redor. E começou a divagar pelo espaço tempo, que teima em trazer de volta lembranças que por vezes pensamos estar perdidas nas névoas do passado, mas as vezes brotam em nossa mente e não nos abandonam, pois fazem parte de nossa vida… e então, começou a lembrar-se do início de casado com Cecília…

Sua primeira desavença com Cecília deu-se no terceiro mês após o casamento… ele chegou relativamente cedo da garagem… eram umas oito horas da noite. Cecília chegou um pouco depois… nesse dia havia substituído uma colega que precisou ir ao médico de manhã. Quando ela chegou, Ricardo estava sentado no sofá, assistindo TV… ela chegou, olhou a postura do marido, foi até a cozinha… as panelas continuavam em seu lugar de sempre, o fogão desligado…nenhuma providência para o jantar havia sido tomada. Ela deu uma olhada de soslaio para a sala… sapatos jogados simplesmente no meio do recinto, uma meia pendurada no rack da TV, outra simplesmente jogada no chão… não falou nada. Simplesmente foi ao banheiro, tomou um banho, trocou-se… e saiu. Umas duas horas depois retornou. Ricardo continuava no mesmo lugar, na mesma posição. Ela atravessou a sala e foi em direção ao quarto. Foi quando o marido a interpelou…

– Não vai fazer o jantar para nós?

Cecília parou perto da porta. Ficou em silêncio por alguns segundos. Virou-se lentamente para o marido e dirigiu-lhe um olhar gélido… tão gélido que ele sentiu-se mal… ela nada falou. Nem precisava. Em seu silêncio, disse tudo o que lhe passou pela cabeça mas não foi expresso pelos seus lábios. Voltou-se novamente em direção ao quarto e trancou a porta…

Quando ouviu o clique da chave, trancando o acesso ao seu quarto, Ricardo levantou-se do sofá como um raio. Correu até a porta, bateu na mesma…

– Cecília… que diabos pensa que está fazendo?

Nenhuma resposta veio de sua esposa. Ele insistiu…

– Cecília… abra essa porta!

O mais sepulcral silêncio foi o que recebeu como resposta…

– Cecília… não vai fazer nosso jantar, não?

Desta vez, quebrando o silêncio, ouviu-se uma gargalhada vindo do quarto. Ricardo ficou desconcertado… passos foram ouvidos, vindo em direção à porta.  O clique, sinal de que a mesma esta sendo destrancada, soou como se tocassem um gongo. Cecília entreabriu a porta, olhou Ricardo bem nos olhos….

– Você ainda não jantou? Que pena…

– Cecília…

– Mas… espera lá… você chegou quase uma hora antes de mim… por que não fez o jantar para nós?

– Hã?!

– Sim, meu caro… que eu saiba, você é extremamente competente… e tenho certeza de que sabe fazer ao menos o trivial na cozinha… porque não fez?

– Cozinha é o seu departamento…

– Desde quando? Quando é que fui contratada como cozinheira da família?

Ricardo ficou em silêncio… o olhar de Cecília não lhe deixava espaço para qualquer tipo de argumento… na verdade, ficou com vergonha, ao ouvir as palavras da esposa. Sim, ela tinha razão. Ele poderia ter feito o jantar para os dois, e ao invés disso… mas ele não queria perder a discussão, então…

– Cozinhar é a sua obrigação…

Cecilia apenas olhou para ele. Novamente um olhar gelado. Tão gelado que lhe deu até arrepios. Ela bateu a porta em sua cara, não antes de jogar-lhe um travesseiro e um edredom… e trancou-se novamente por dentro… e foi então que ele ficou sem jantar e dormindo no sofá… e essa condição perdurou por uma semana…

Ricardo estava errado, e sabia disso. Mas não queria admitir tal fato. Chegou inclusive a comentar na garagem, com seus colegas, pensando que teria apoio dos mesmos. Claro que sempre tem aqueles que apoiam todas as besteiras que você fala, mas sempre tem alguém de bom senso que tenta te abrir os olhos… se você está pronto para ouvir as verdades que lhe serão atiradas no seu rosto, que bom… vai com certeza corrigir seus desvios. Mas enquanto não estiver pronto para dar esse passo, com certeza continuará teimando em seguir o caminho errado…e Ricardo ainda estava nesse patamar… depois de uma semana sem conversar com a esposa… ela realmente resolveu dar-lhe uma lição, e essa veio por meio de um gelo total… o rapaz achou que estava na hora de se reconciliarem. Ficou pensando quase que um dia inteiro, tentando definir qual seria o presente ideal para Cecília… uma joia não daria certo, ela não gostava de usar nada… nem anel, colar, pulseira, brinco… levá-la para jantar fora? Com certeza iria levar para o lado pessoal e não aceitaria…. foi então que teve um estalo… antes de terem sua pequena divergência quanto a quem deveria cuidar de certas urgências do lar, tipo se você chegar primeiro, por favor, faça as coisas como eu faria, lembrou-se que ela havia comentado que gostaria de ler o livro “Se houver amanhã”, de Sidney Sheldon… e que iria comprá-lo no final do mês…. pronto, encontrou a pomba branca da paz. Durante seu dia de trabalho deu uma fugidinha até uma livraria e comprou o livro para sua amada. Pediu para que a atendente fizesse um lindo embrulho para presente e, quando chegou em casa, entregou-o para Cecília. Ela aceitou o pedido de desculpas e passaram alguns dias em paz… mas as tormentas sempre rondam os lares, não é mesmo? A paz conjugal nunca dura muito tempo…   

Tania Miranda
Tania Miranda
Trabalho na Secretaria de Estado de Educação do Estado de São Paulo e minha função é "Agente de Organização Escolar", embora no momento esteja emprestada para o TRE-SP, onde exerço a função de "Auxiliar Cartorário". Adoro escrever, e no momento (maio de 2023) estou publicando meu primeiro livro pela Editora Versiprosa...

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