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segunda-feira, 30 de junho de 2025

Um desejo de adubo para a planta crescer

Tenho a impressão de que há uma urgência no ar. Pura no puro. No osso disputado, na carne cara. Na ausência de perspectiva. Na falta de visão, turva e tonta. Um ronco ensurdecedor, que não cala, não para. Ao estremecer, faz querer dormir para passar antes de cair.

Basta pegar um ônibus para ver. Nas calçadas, à vista, essa coisa me aparece. As imagens passam borradas, mas, em alguns instantes fixos, vislumbro que alguns se apegam a santos e orixás, outros à bíblia e outros tantos às plantas. Um verde que se mistura com o cinza e o preto do asfalto. Quando o armário fica puro lá dentro mais pureza aparece por fora. As plantas que purificam o ar e enfeitam as fachadas, essas máscaras que dão nas vistas. Parcelada mesmo é a fome. Essa vem de certeza todos os dias.

Nas casas coladas e coloridas deste caminho o que aparece primeiro são as espadas de São Jorge, a arruda e o comigo ninguém pode. É um fenômeno. Enquanto que uns compram a quatro reais um saquinho de estrume, outros tantos nem os quatro reais têm. Imagina um pouco de adubo? Nem em sonhos. Isso sou eu, um idiota sonhando acordado, com pensamento solto demais.

Ah, que saudade da terra! Saudade porque pisamos no concreto e ele não enraíza, não cresce e não dá frutos. Veganos pela falta de opção, ter uma horta em casa pode ser um sentimento de resistência, o que subverte a ordem colocada. Por isso os pequenos vasos marrons e cinzas ou simplesmente as latas brancas de tinta que servem como um pequeno suporte para a vida.

Sustentam uma fé e uma esperança de tempos melhores nesses curtos espaços. Quadrados, suburbanos, civilizados, dóceis.

Acontece que por essa viagem corriqueira, eis que surge um sinal logo a frente. O amarelo apagado, desde quando eu não sei. O verde se apagou e o vermelho vai apagar em breve, liberando o trânsito. Com o veículo parado, olho com mais curiosidade pela janela de vidro. Na calçada, diante um muro coberto de hortaliças e flores, está um cachorro de rua, abandonado, mas passando bem. Inclusive bem melhor do que muitos de nós. A cena chama atenção de todos em poucos instantes. Mecanicamente, viramos as cabeças para seguir com o olhar, os movimentos do cão. Eita que danado esse capetinha, se mostrando para os pobres diabos.

O inusitado fausto prendeu, mas não foi o suficiente para se fazer despertar. Precisa de muito mais do que um breve momento. Precisa ser astuto continuamente! Materializado num museu democrático da memória. Despertar é um processo longo que pode durar 21 anos. Aí é que mora o perigo, canta o samba. A gente sonha e o cachorro se farta. Ele morde vorazmente uma costela quase do tamanho dele. E olhe que é um vira lata bem grande, nem tão pomposo como os de Brasília, aquelas marionetes, mas mesmo assim, grande. Eu acharia irônico se, na ganância, ele desmatasse todo aquele jardim atrás dele, naquele quintal amazônico e colonizado pela carne. Afinal, não ponho fé nessa piada sem graça de um vira lata que vira a lata, pois para (pe)cu tem área o suficiente.

É sem humor e sem cuspe, mas olhamos aquilo com lamento, inveja e até admiração. Acrescente a isto uma pitada de desejo mal escondido e você terá um belo prato de realidade. Mas não adianta porque logo fantasiamos. Será que dá para parcelar no cartão da vizinha um pedaço daqueles de costela e fazer um churrasquinho com breja? Esse mês não… pensando bem talvez no próximo… acho que não… na verdade deixa pra lá. Uma dor nostálgica e lancinante percorre a espinha da coluna. Comeram os restos de costela que a gente tinha. Sobrou mais nada. Desnutrição do corpo político.

O sentimento ruim vai embora quando o sinal se abre e as cabeças apenas se viram para outras direções. Estagnam-se novamente, robotizadas. É a natureza que vem antes da humana, que clama e chama para os caminhos iluminados pelo sinal verde. É urgente marchar. Joga pra segunda, que a sexta é de lei! Vamos para casa ligeiro que o negócio está sério, seu motorista! Temos a liberdade de descansar também! Pense na ilusão, pois já passou da hora de fincar as raízes e retomar a Terra das mãos do concreto Liberal.

No fim, em meio à fumaça, ao silêncio e à ausência de metal e da borracha do pneu, o cachorro avista o ônibus à distância. Ele já vai na estrada de terra, envolto por palmeiras pelos lados, lá pelos lados dos grandes lagos. Alagoas e Palmares. A arrancada do ônibus revela o açougue na esquina fechando as portas pela última vez. Ao mesmo tempo em que o animal indefeso ouve, com seus ouvidos aguçados, um Zumbido. Como um enxame de abelhas famintas e revoltadas. É um aviso zunindo no juízo de quem quer e de quem não quer se fazer ouvir. Vibra, nutrido pela força da presença, mais um retorno da ancestralidade ao reencarnar as periferias modernas.

Autor:

Robson Brito 

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