Eram umas três horas da tarde, o sol estava realmente a ponto de fritar um ovo na pedra… é claro que nos locais arborizados não se sentia tanto assim o calor do astro rei, uma vez que a brisa fresca que passava entre as folhagens refrescava todo o redor. Mas Zacarias estava cavalgando pelo descampado, onde nem mesmo um pequeno arbusto ousava crescer pela terra. Tudo porque era local destinado ao pasto para o gado, onde a brachiária dominava todo o cenário. As rêses estavam descansando em um ou outro pé de angico, distantes um do outro pela região. Depois de algum tempo, já deixando o pasto para trás, finalmente Zacarias avistou uma cabana. Era a morada dos Resende, família que trabalhava na plantação de arroz, mas que morava um pouco distante da vila dos colonos por opção própria. A família contava com dez membros, sendo sete rapazes, uma moça e o casal, cabeça da família. Seu Malaquias, patriarca da família, tinha trinta e cinco anos, dona Geralda, mãe da prole, tinha a mesma idade. Mas aparentavam bem mais que isso. Qualquer um que não os conhecesse diria que tinham no mínimo uns cinquenta anos… a vida no campo é dura… seu filho mais velho, o Zelão, tinha 26 anos e o caçula, José Carlos, mais conhecido como Zeca, tinha 15. E era justamente com o Zeca que Zacarias veio conversar.
Todos conheciam Zacarias na fazenda, e sabiam que, de tempos em tempos, ele fazia uma vistoria por todo o perímetro da fazenda, então ninguém estranhava quando ele chegava em alguma das casas, não importava o horário que fosse. Afinal, era com ele que tinham que tratar qualquer problema que houvesse, pois ele era o encarregado de manter a fazenda funcionando. Sim, embora não gostasse do título, Zacarias era o capataz da fazenda. O senhor Nardi tinha plena confiança em seu empregado, e a amizade vinha desde a mais tenra infância… os dois praticamente cresceram juntos…
Zacarias já estava próximo da cabana de Malaquias, e Zeca o reconheceu. Acenou para o braço direito do patrão. E ficou pensando com seus botões sobre “o que o capataz quer com a gente?” Bem, não esquentou muito a cabeça, pois logo teria sua resposta. Mais alguns minutos no sol a pino e finalmente Zacarias chegou ao destino. Zeca o convidou a desmontar e entrar na casa, o que este aceitou de pronto… Depois de acomodado, e ter tomado um copo de limonada fresca, que dona Geralda fez para ele, começou a conversar sobre amenidades com o rapaz. Perguntou várias coisas. Num dado momento, perguntou ao menino se estaria preparado para caminhar um pouco, e recebeu um sonoro sim. E lá foram os dois, caminhando pelo sol quente, conversando amenidades. O rapaz olhou curioso para o ombro ferido de Zacarias…
– Dói muito?
– Até que não… já está quase curado… o doutor disse que daqui a mais uns dias eu posso tirar a tipóia…
– Incomoda?
– Claro, menino. Afinal, já faz mais de um mês que estou com esse braço imobilizado…
– Ainda bem que o tiro só acertou seu ombro, não?…
Zacarias fitou o rapaz em silêncio… tinha que lhe fazer uma pergunta, mas não queria constrangê-lo…
– Sabe por que estou aqui, não sabe?
– Acho que sim… é por causa da nossa última conversa…
– Isso mesmo… conseguiu convencer seus pais?
– Nem em sonho… o senhor conhece minha família…
– Nem o Zelão te ouviu?
– Ele me chamou de doido..
– Entendo…
Silêncio entre os dois, novamente. Caminharam um pouco, até um pé de angico, que estava fora das pastagens… sentaram-se à sombra da árvore…
– Você sabe que sem seu irmão não tem como parar isso, não é?
– Sim, o senhor já me explicou… mas quem disse que aqueles cabeças-duras querem ouvir?
– Entendo… ví seu rastro lá no pasto… o que foi fazer lá?
– Espero que o senhor não esteja preocupado com isso…
– É claro que estou… e se algum vaqueiro te avistasse? Você sabe que tem pelo menos três cavaleiros fazendo a ronda pelos pastos, dia e noite…
– Bom, o senhor disse que nada podia me ferir…
– Nada, exceto bala de prata… e acontece que todo vaqueiro tem pelo menos uma dessas no tambor de sua arma… imagina o que aconteceria se te acertassem…
– Eu sei, seu Zacarias… eu só queria proteger a propriedade….
– Não faz mais isso, garoto… o Juca viu seus sinais e está meio… preocupado!
– Ele me viu?
– Não, mas viu seus rastros…
Ficaram em silêncio novamente. O que Zacarias estaria pensando naquele momento? Essa era a pergunta que zumbia sem parar pela cabeça de Zeca…
– Menino, você sabe que isso só vai acabar quando seu irmão mais velho aceitar te batizar…
– O senhor falou isso antes…
– E agora você viu que é verdade…
– O senhor acha que sou uma ameaça?
– Não… por ora, não.
– Então vou virar uma ameaça…
– Espero que não… ficaria muito triste se tivesse que te matar…
Zeca ficou calado… não lhe agradou muito a frase dita por Zacarias…
– Então é isso, rapaz… você tem que convencer seus pais e seu irmão a te batizarem lá na Igreja… só assim você vai escapar dessa maldição…
– E se…
– Esse é o problema… não existe e se…
– O senhor sabe que a crença de meus pais é outra…
– Eu sei… vocês são protestantes… mas em alguns casos, acho que seus pais deveriam ser maleáveis… você ainda está nos estágios iniciais da licantropia… ainda não oferece perigo para ninguém, a não ser para você mesmo…. o problema vai ser daqui a alguns anos… a gente vai mudando nossa índole… compreende?
– Sim… não queria entender, mas… sim, eu entendo…
– Se você conseguir se manter puro de coração… o que não é fácil nessa vida… seu outro “eu” também será manso. Mas se, por algum motivo, a ira desabrochar em sua alma…
– … então o lobo ficará violento, é isso?
– Sim, menino, é isso… infelizmente a gente não tem como domar a fera que mora dentro de nós o tempo todo. Ninguém é bonzinho ou malvado todo o tempo… mas, no seu caso, apenas um deslize, e você cai em um caminho sem volta…
– E a minha única solução…
– … é seu irmão aceitar te batizar na Igreja…
– Estou perdido! Ele nunca vai aceitar! E meus pais também não! Para eles, a salvação da alma está em sua crença e em nenhuma outra! E se descobrem que eu sou…
– Eu sei… é por isso que você tem que convencer seu irmão… e seus pais… que deseja se converter ao catolicismo, sem entrar em detalhes…
Zeca olhou para o companheiro, desanimado… se seu irmão e seus pais descobrissem que ele era… bem, o que ele era, com certeza estaria condenado à morte… se não fosse batizado pelo seu irmão, continuaria com a maldição e poderia realmente se tornar perigoso e, em consequencia, seria condenado à morte… ele não conseguia ver nenhuma saida em sua situação…
Zacarias levantou-se. Estava na hora de partir… estava com pena do rapaz, mas não podia fazer nada por ele… esperava, de coração, que o rapaz conseguisse achar uma saída… mas sabia que não seria fácil. O rapaz queria se converter… mas não bastava apenas ele ir para a Igreja… tinha que convencer seu irmão mais velho a acompanhá-lo. E isso era quase que uma missão impossível para o garoto…

Autora:
Tania Miranda