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segunda-feira, 9 de setembro de 2024

31 – Depois da tempestade

– O que faço com eles, Delegado?

– Como assim?

– A gente prendeu eles… mas o que é que eu faço, agora?

– Não é obvio? Abre o processo contra eles, oras…

– Isso é muito bonito no papel, Delegado Vicente… mas nem juiz a gente tem nessas redondezas…

– E não é só requisitar um na Capital? Existe um Juiz Itinerante… é só chamar…

– Mas onde vou deixar esses cabras?  Nem cela a delegacia tem…

– Como assim?

– É, Delegado…a gente não tem onde deixar os prisioneiros…

– Alguma cidade próxima daqui com cadeia?

– A mais perto fica a dois dias de viagem…

– Mas como é que designam um delegado para uma cidade que nem cadeia tem?

– Com todo respeito… como é que eu vou saber? Me mandaram vir para cá, eu vim… o resto não é comigo….

– E o senhor nunca foi atrás disso? Cabia ao senhor tomar as providencias…

– Negativo… a minha função era manter a cidade sem encrencas… e isso eu sempre fiz…. 

Vicente fica pensativo…. como não havia notado que a delegacia não tinha dependências para abrigar os prisioneiros? Isso realmente era um problema… mas teria que haver uma solução… depois de alguns minutos pensativo, Vicente voltou a falar com Duarte…

– Qual a fazenda mais próxima?

– Por que?

– Ora, é simples… a maioria das fazendas ainda conserva suas senzalas… em uma situação como essa, a gente pode requisitar o local e instalar os prisioneiros lá…

– Bom, a mais perto é a Santa Helena, do “seu” Nardi… mas eu acho que faz muito tempo que ele derrubou a senzala que tinha lá…

– Não custa nada a gente verificar, não é? Afinal, o gado que roubaram era dele mesmo…

Duarte balançou a cabeça… não gostou muito da idéia…e se os vaqueiros da fazenda resolvessem justiçar os ladrões? Afinal, controlar a raiva dos homens ao ver seu companheiro ferido não foi uma tarefa muito fácil… eles queriam acabar com os bandoleiros ali mesmo! E agora esse Delegado mequetrefe queria deixar os homens à mercê de suas vítimas? Isso era, no mínimo, loucura…. não se guarda as galinhas na casa das raposas…

– Sei o que você está pensando, Duarte… mas se a gente quer mudar a maneira das pessoas pensarem sobre o que é justiça, tem que começar por algum lugar… além disso, tem outra solução melhor?

Duarte continuou calado. Não, ele não tinha uma solução melhor. A idéia do Justiceiro era a única viável naquele momento. Diabos, ele iria correr atrás dos vereadores da cidade cobrar a construção de uma cadeia para o povoado o mais rápido possível, para não passar por esse perrengue uma segunda vez… estava andando de um lado para o outro pela sala, então parou e encarou Vicente… 

– Doutor, me diga uma coisa…

– Pode falar… mas chega dessa história de doutor… eu não sou médico….

– O que foi que aconteceu lá na beira do rio?

– Como assim?

– Bom… a gente estava conversando, sentado naquele tronco caído…

– Sim…

– Bom, até aí, tudo bem…  eu não entendo o que aconteceu depois…

– E o que aconteceu depois, Duarte?

– Aquela… mulher… pelo menos eu acho que era uma mulher…. que saiu da água e veio em nossa direção….

– O que tem ela?

– Diabos, Delegado… eu nunca senti tanto medo na minha vida como senti naquele momento…

– Sei… e?…

– É isso que eu não entendo! O que era aquilo, por todos os diabos?

– Bom, o que te pareceu que era?…

– Sei lá… uma assombração?…

– É isso o que o senhor acha?

– Esse é o problema… eu não sei… nem tenho certeza se vi mesmo aquilo…

– Bom, se isso te serve de consolo… a gente viu a aparição, mesmo…

– E…?

– E ela só não nos atacou por causa dos amuletos que Pai João nos deu…

– E…?

– E aquela era a “Encantada”… eu não sei o que ela quer por essas bandas… 

– E o que ela ia querer, além do sangue das pessoas?

– Eu não sei, delegado… é isso que a gente tem que descobrir…

– E como é que a gente vai conseguir?

– Eu não sei… nesse momento, só sei de duas coisas… a gente descobre o que aquela criatura quer com o seu povoado ou descobre uma forma de destruí-la… e, vai por mim… é mais fácil descobrir o que ela quer…

– O senhor já enfrentou esse tipo de coisa, antes?

– Uma “Encantada”? Não, até hoje, não… mas já encontrei outros seres do além… e posso te dizer uma coisa… se estão aqui, é porque tem alguma conta para acertar… nem eles gostam de ficar em nosso plano… não é confortável para as almas que já estão em outra dimensão de existência…

– Mas ela está matando pessoas…

– Eu sei… mas não é por vontade própria… reparou no semblante dela?

– Sim… 

– Ela não tinha o desejo de nos atacar… eu diria até que ficou aliviada quando foi repelida pelo poder dos amuletos…

– É, mas por pouco não janta a gente naquela hora…

– Duarte, Duarte… tem que aprender a ver além das aparências… entenda uma coisa… as almas do outro lado não tem interesse nenhum em ficar em nosso plano… com essa “Encantada” é a mesma coisa… ela está matando? Sim, está… e vai continuar matando até que a gente descubra um jeito de mandá-la de volta para o lugar ao qual ela pertence…

– Que seria?

– Como é que eu vou saber, Duarte? Isso a gente vai ter que descobrir…

E Vicente deu a conversa por encerrada. Duarte reuniu seus ajudantes, pegaram os prisioneiros e tomaram o caminho de Santa Helena… talvez a fazenda tivesse algum lugar que servisse de alojamento para os prisioneiros, enquanto esses esperavam a chegada o Juiz que iria julgar seus crimes… ele só esperava que o pessoal da fazenda não resolvesse castigar os bandidos por conta própria… mas aí… isso já fugia de suas mãos, afinal a idéia tinha sido do Delegado Federal….

32 – A visita

Quase um mês se passara desde que as meninas partiram e Zacarias foi ferido em combate. Ainda com o braço na tipoia, ele já cavalgava pelos campos, supervisionando os vaqueiros na lida diária do gado. Como o ombro ferido foi o esquerdo, continuava a usar normalmente sua arma, embora não desejasse sacá-la do coldre… “Só puxe sua arma se realmente for usá-la”, foi a primeira lição que recebeu quando ganhou seu revolver. E ele procurava ao máximo evitar o uso desta, inclusive no campo. Embora fosse costume de alguns vaqueiros efetuar disparos para cima em algumas situações para controlar o gado, Zacarias procurava sempre alguma saída alternativa. Resumindo… mesmo sendo uma ferramenta importante em seu dia a dia, Zacarias detestava o uso das armas.

Enquanto estava com o braço imobilizado, Zacarias não podia exercer as funções de leiteiro e carreiro, que tanto amava fazer. Para cobrir sua ausência, deixou Tonhão responsável pelas duas tarefas…Juca continuava no campo, cuidando da segurança do perímetro, para evitar novas visitas dos amigos do alheio… tudo estava correndo bem, como se esperava que corresse. Claro que a única coisa que agoniava Zacarias era a falta de notícias de sua filha e a amiga dela… mas seguia a velha premissa de que “não ter notícias é sempre uma boa notícia…” embora isso não acalmasse seu coração de verdade….

Era pouco mais do meio dia… Zacarias estava sentado na porta de sua cabana, quando avistou um cavaleiro chegando a passo lento. O cavalo trotava dolentemente, denotando que seu cavaleiro não tinha nenhuma pressa de chegar onde quer que fosse. Por mais que tentasse, não conseguia identificar quem estava se aproximando. Depois de mais ou menos um quarto de hora, finalmente conseguiu identificar o visitante… era o Delegado que havia auxiliado na recuperação do gado roubado. O que será que ele estaria querendo por ali? Bom, enquanto não chegasse, não teria como descobrir…

Finalmente o cavaleiro chegou até Zacarias, cumprimentou-o e esperou o convite para apear. Zacarias fitou o visitante por alguns minutos e, como o sol estava de torrar, convidou-o a entrar e se proteger do calor que fazia…sem delongas, Vicente desmontou.

– Tarde, Delegado… em que posso te ajudar?

– Nada sério, seu Zacarias… só queria um dedo de prosa com o senhor…

– Aceita um café? Daqui a pouco sai o almoço… come com a gente…

– Agradecido… não vou atrapalhar?

– Claro que não. Só me dá uma licencinha, já volto…

E Zacarias foi avisar Rosário que teriam um convidado para o almoço. E na volta, trouxe o bule de café, com um prato com alguns biscoitos…

– E então, Delegado? Sobre o que queria falar, mesmo?

– Bom, primeiro, pode parar de me chamar de delegado. Pode me chamar pelo meu nome. Pode me chamar de Vicente ou Juvêncio, que são meu nome de batismo…

Quando ouviu o segundo nome, Zacarias quase engasgou com o café….

– O… senhor não… não é….

Juvêncio se divertiu com a confusão momentânea de Zacarias. Toda vez que ele se apresentava com seu primeiro nome a surpresa que se estampava no rosto das pessoas era… como se poderia dizer… surpreendente!

– Sim, meu amigo… por muito tempo cavalguei por esse sertão… e me chamavam de “justiceiro”.

– Mas o senhor já era um delegado?

– Não, claro que não… levei algum tempo para entrar para o time da lei… que nem sempre está ao lado da justiça…

– Não entendi…

– Vamos deixar prá lá… te garanto que é melhor…

– Sobre o que o senhor queria conversar?

– Soube que o senhor avistou algumas… aparições….

– Esse povo fala demais. Eu não vi nada.

– Seu Zacarias, isso é muito importante… se não fosse, eu não teria vindo te procurar.

– Não entendi…

– Explico… eu sei que o senhor não gosta de falar sobre as aparições que já presenciou…

– Bom… eu não posso falar sobre aquilo que não sei explicar…

– Seu Zacarias… a muito tempo eu caminho por esse sertão sem fim…

– Eu sei…

– E já vi muita coisa, desse e do outro mundo…

– O senhor acredito “no outro mundo”?

– E o senhor, não?

– Bom, admito que já vi algumas coisas esquisitas…

– É o que dizem…

– Mas isso não quer dizer que seja coisa do outro mundo…

– E como o senhor explica a bola cheia de sacis?…

– Quem falou isso para o senhor?

– Não importa… o senhor viu, não viu?

Zacarias ficou calado por alguns minutos. Certas coisas preferia não lembrar e aquela aparição, apesar de não ter sido assim tão assustadora quanto outras que já havia presenciado, era uma delas. Ele não gostava de falar sobre qualquer coisa que não conseguisse explicar e com certeza não tinha como falar sobre aquilo….

– Então, seu Zacarias… o senhor já viu algumas coisas estranhas aqui na região… aliás, aqui é um pouco que meio uma região assombrada, não é?

– Não sei do que o senhor está falando…

– Bom, eu e o Duarte tivemos um encontro cara a cara com a “Encantada”…

– O senhor a viu??!!!

– Como estou vendo o senhor….

– E continua vivo?

– Bom, quando vamos atrás de certas coisas, temos que tomar certas precauções…

– Até hoje ninguém que viu uma dessas coisas ficou vivo para contar a história…

– É, eu sei… mas como te disse, essa não é a primeira vez que enfrento esse tipo de… inimigo!

– E o que o senhor queria de mim?

– A sua ajuda, seu Zacarias… eu preciso limpar o arraial dessas… coisas! E sozinho, não vou conseguir.

– O senhor tem o delegado Duarte para ajudá-lo….

Juvêncio olha para Zacarias e ri… um riso leve, divertido. Zacarias olha para ele, sério…

– O senhor confia nele, não confia?

– No Duarte? Claro que sim… é um inepto… mas é honesto. O problema é que ele não está preparado para certas… caçadas, me entende?

– Bom… sinceramente… eu acho que não estava nos planos dele caçar fantasmas , quando o mandaram para cá…

– Não está nos planos de ninguém… mas a gente tem que dançar conforme a música…

– Entendo…

– E, se para resolver os casos que estão assombrando a vida da região depende de investigar o mundo do além, é o que temos que fazer… afinal, quando esgotamos as possibilidades do mundo real, temos que ver também aquilo que nos parece fantástico demais para ser verdade…

Zacarias ficou alguns instantes calado, pensativo… o que aquele homem à sua frente estava falando não fazia sentido nenhum prá ele… como é que poderiam, investigar forças do além? Como iriam prender uma mula sem cabeça, por exemplo? Não, definitivamente esse sujeito não batia bem das ideias…

– Posso contar com a sua ajuda, seu Zacarias?

– E como eu poderia te ajudar, senhor?

– Primeiro, me falando sobre a região… se puder me falar sobre as histórias que já ouviu sobre a região… mesmo as mais fantasiosas… já me ajuda bastante…

– Não entendo…

– Seu Zacarias, só existem duas maneiras de nos livrarmos de um fantasma… uma, é sabermos do que ele precisa para abandonar nosso plano… os fantasmas não desejam permanecer por aqui, pois para eles é uma fonte de sofrimento… ou um ritual de exorcismo, o que denota mais tempo de realização e nem sempre é garantia de que vá dar certo…

– E…?

– E é por isso que preciso da sua ajuda… preciso descobrir quem foi a “Encantada” quando viva, e o que aconteceu com ela, para que se tornasse um fantasma violento e sanguinário…

– Deve estar se vingando de alguma coisa…

– Sim… mas de quê? É por isso que preciso saber o máximo de coisas sobre a região… preciso entender o que a leva a agir como age….

Autora:

Tania Miranda

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