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quarta-feira, 11 de setembro de 2024

A mulher de branco

Corria um boato por todo o arraial de que um fantasma estava atacando os incautos que andavam pelas ruas depois da meia noite. E que essas pessoas, invariavelmente, morriam por falta de sangue… sim, o fantasma sugava todo o sangue das pessoas e depois desaparecia pelas brumas da noite, deixando o corpo inerte na estrada… poucos conseguiam sobreviver ao ataque, e estes diziam que haviam sido atacados por uma mulher muito bonita. Alta, esbelta, cabelos amarelos, com a cor do sol resplandecente e olhos azuis, tão azuis quanto a água do rio cristalino, lábios vermelhos como a rosa mais bela da roseira… ela não parecia perigosa a primeira vista. Não despertava nenhum tipo de medo em quem a encontrava à noite… mas quando chegava perto da vítima, se transformava, tornando-se a mais horrível besta-fera que poderia cruzar seu caminho…

Maria ouvia essas histórias e ficava simplesmente apavorada. O medo era tanto que nos últimos tempos, ao deixar o trabalho na roça, ia direto para casa, antes que a noite caísse. E já não saía tão cedo de casa para pegar o trabalho, esperava que os primeiros raios de sol surgissem no horizonte, para só então se dirigir para a roça. E não era a única a proceder assim. É claro que o patrão não estava gostando muito dessa história, afinal entrar mais tarde no trabalho e sair mais cedo fazia com que a produção diminuisse… mas o que ele podia fazer? Enquanto esse boato continuasse a percorrer as redondezas, não havia outro remédio senão deixar os peões se cuidarem da maneira que achassem mais seguro… de qualquer forma, como o pessoal ganhava pelo que produzia, para ele o prejuízo não era tão grande, assim…

Graça era mais desprendida, não acreditava muito… acreditava um pouco, é claro… nas histórias que ouvia da boca do povo. E como estavam na Quaresma, época em que todos os espíritos ruins estavam soltos pelo mundo, ela se precavia como sabia ter que se cuidar. Seu crucifixo de prata, benzido pelo Bispo de Aparecida, presente de seu padrinho, não saia de seu pescoço, assim como uma garrafinha de água benta, seu terço e o missário, onde as orações fortes para sua proteção estavam gravados. Sim, ela tomava cuidado para não ser pega pelas forças do além. E aos poucos foi convencendo sua amiga Maria de que se tivessem fé no poder de Deus, podiam caminhar tranquilamente pelas estradas fosse a hora que fosse, pois os anjos estariam sempre ao seu lado, protegendo-as de todo o mal que viesse dessa terra ou do outro lado. E então as duas começaram a sair bem cedo novamente, não que Maria estivesse plenamente convencida da segurança que sua amiga apregoava, mas depois de duas semanas em que seu pagamento foi reduzido substancialmente, resolveu encarar os perigos das madrugadas do sertão… mas só saia de casa quando sua amiga a chamava no terreiro, afinal de contas, precaução e caldo de galinha…

Nunca viu nada de anormal em todas as andanças pela madrugada e de noite, junto com Graça. Depois de uns dias até voltou a se arriscar a buscar lenha com a amiga depois do trabalho. As duas se embrenhavam pela mata e só retornavam para suas casas com um feixe substancial de lenha, afinal esse era o combustível para cozinharem sua comida… Graça morava próxima de Maria. Ela vivia com sua mãe, viúva já a alguns anos. O pai da moça era vaqueiro, e um dia, quando estava separando algumas reses para seguir em campanha, a chuva começou, os relâmpagos começaram a ecoar pelos céus, o gado estourou… e o rapaz caiu de seu cavalo, sendo pisoteado pelos animais que corriam de um lado para o outro, apavorados com os estrondos. Quando finalmente seus companheiros conseguiram acudi-lo, já não podiam fazer mais nada por ele….já estava morto. E desde então o único porto da mãe de Graça era ela, que sempre estava ao lado da mãe, para o que precisasse, não importava o que fosse…. é, a vida era dura…

Era domingo, Maria foi até o centro do arraial, acompanhada pela família. Iam assistir a missa, que era rezada uma vez por mês pelo padre Mauro, que vinha de Cruzeiro especialmente para isso.  Não havia  missa nos outros domingos. A localidade era pequena, a população não era assim tão grande, por isso a capela só era usada uma vez por mês, como já disse. Nos outros domingos, geralmente os próprios fiéis organizavam o culto em suas casas. Afinal, não era porque não tinha padre que iam deixar de expressar sua fé. Então organizavam terços e novenas, que tinham seu término coincidindo com a visita do pároco à capela.

Depois de terminada a função, cada um foi para um canto, olhar as novidades que chegaram da cidade grande. Maria perambulava por entre as barracas, apreciando as mercadorias que eram ofertadas. Não ia comprar nada, pois o dinheiro contado já estava comprometido com as compras da semana. Talvez no final do ano pudesse gastar um pouco e comprar aquele vestido de chita tão lindo que havia visto em uma das bancas… mas não hoje, com toda certeza. 

Maria de repente notou que estava em uma rua que não conhecia. As bancas haviam acabado, e ela havia continuado a caminhar.  A rua era bonita, toda enfeitada de flores, mas as casinhas já estavam um tanto longe do local em que ela se encontrava. Foi então que ela viu… não muito longe, uma mulher se aproximava…. alta, magra, cabelos amarelos, vestido branco…. Maria gelou no ato… era a fantasma sanguessuga… estava perdida… porque teve que se afastar tanto do vilarejo? E a mulher se aproximava… as pernas de Maria começaram a tremer, ela ficou paralisada de medo, sua voz não saia, ela queria gritar por socorro, mas não conseguia… finalmente a mulher chegou ao lado da moça. Olhou-a, viu o pavor em seu rosto, deu de ombros e seguiu em frente… só depois de alguns minutos que a mulher desapareceu pela estrada, Maria voltou ao normal… e então se deu conta de que nenhum fantasma cruzara seu caminho, mas simplesmente uma pessoa que estava aproveitando a manhã do domingo para passear, como ela mesmo o fazia…

Graça

Graça caminhava pelas margens do rio que cortava o vilarejo ao meio. Era um rio cristalino, e o marulhar das águas correndo por seu leito dava uma paz de espírito que tal não havia além dele. Ela gostava de passear por aquele caminho… mesmo sua mãe lhe recomendando não andar sozinha por aquele lugar… afinal, quem poderia dizer que perigos poderiam estar escondidos por aquele caminho? Para ela, não parecia haver perigo algum, mas já havia ouvido de casos de pessoas que simplesmente sumiram naquela localidade. Assim, do nada. Mas isso eram histórias que ela ouvia contar. Nunca conheceu ninguém que de fato tivesse sumido. Era sempre a história de alguém que era conhecido de alguém que saíra para passear com alguém por aquelas bandas e de repente não mais retornou. Ela até acreditava que alguma das histórias tivesse um fundinho de verdade… mas não da maneira que contavam.

Segundo a história corrente, naquele rio, em algum trecho que ninguém sabia ao certo qual era, morava a mãe d’água. Metade mulher, metade peixe, tinha sua metade humana o aspecto de uma mulher muito bonita. Tez morena, olhos oblíquos, negros como a noite sem luar,  cabelos longos  e negros, boca vermelha como se tivesse passado carmim… e uma voz maviosa, que a todos que ouvissem, enfeitiçava, deixando as pessoas à sua mercê. Diziam que, embora fosse meio gente meio peixe, quando saía da água, tomava o aspecto de uma pessoa normal, e dificilmente alguém perceberia não estar na presença de um ser humano. A única maneira de identificar uma Iara fora de seu habitat natural era uma pequena marca atrás de sua orelha direita… um pequeno furo que servia para aquele ser respirar fora d’água…

Mas porque um ser das profundezas do rio iria querer se misturar com as pessoas comuns? Dizem que de tempos em tempos ela vinha à superfície para procurar alguma alma que merecesse suas benesses. Ela testava as almas que escolhia e, se essas não passassem no teste por ela aplicado, como castigo as levava até o fundo do rio e as aprisionava, esperando o dia em que alguém passasse por seus questionamentos e fosse digno de libertar não só as almas cativas, mas também de herdar um tesouro que a muito se encontrava perdido para o mundo, pois fora entregue aos seus cuidados e somente quando ela encontrasse a alma merecedora, essa fortuna voltaria a ver a luz do dia…

Bem, não é que Graça fosse uma pessoa crédula em exagero, mas até que não seria ruim encontrar a mãe d’água e ser testada por ela, conseguir ser aprovada e ganhar o tal tesouro. Afinal, tanto ela quanto sua mãe viviam contando as moedas para poder fechar as contas da semana… e algumas vezes acabam sem conseguir honrar algumas dívidas e tinham que contar com a ajuda dos amigos mais próximos.  Todos estavam na mesma pindaíba, mas quem conseguia respirar um pouco mais tranquilo, ajudava aqueles que estavam na beira do precipício. Quem costumava dar uma mão para Graça e sua mãe, Dona Constância, era Zacarias e sua família. Sempre que as duas estavam sufocadas, por um motivo ou por outro, lá vinha Dona Rosário ou uma de suas filhas com um embornal com alguns produtos que elas precisariam, de arroz e feijão até material de limpeza ou outra coisa qualquer que precisassem… se não fosse essa ajuda, elas não teriam para onde correr…

É claro que não era esse o motivo de seus longos passeios pelo rio… não, ela caminhava por ali porque realmente era o único lugar que conseguia lhe dar paz de espírito. Aquele frescor do rio, acompanhado pela serenata característica da floresta, com seus diferentes sons, onde misturava o canto dos pássaros com o cricrilar dos grilos, o voo das várias espécies de borboletas por entre as flores que nasciam próximas da margem… sim, tudo isso junto fazia com que aquele lugar fosse um pedacinho do paraíso na terra…

Mas hoje a motivação de seu passeio era outro. Precisava pensar sobre sua vida, sobre o que iria fazer… recebera um pedido de namoro, o que quase equivalia a um pedido de casamento. O pretendente era Juca, um dos ajudantes de “seu” Zacarias. Sim, o rapaz era trabalhador. Carreiro, boiadeiro, vaqueiro… o que pedissem para ele fazer, fazia. E ganhava um pouco melhor que aqueles que trabalhavam com a enxada. Tinha seu ranchinho bem ajeitado, o que era uma coisa de louco, já que a muito morava sozinho, ao lado de um pé de ipê. Se aceitasse o pedido de namoro do rapaz e, posteriormente, o pedido de casamento que com certeza viria, sua vida estaria parcialmente arrumada. Teria alguém em quem confiar e a vida não seria tão dura, como tinha sido até o momento. Mas… e se não desse certo? E sua mãezinha, como ficaria?… e se ele não aceitasse sua futura sogra morando no mesmo teto? Sim, ela tinha que pensar muito bem sobre que decisão tomar… afinal, não queria se arrepender do passo que resolvesse dar… 

Autora:

Tania Miranda

1 COMENTÁRIO

  1. Muito bom. Também, tenho um conto de mesmo nome “A mulher de branco”. Um caso fantasmagório ocorrido na Região de Irecê. A tribuna publica?… Sds. Levi c. de Oliveira

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