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segunda-feira, 22 de julho de 2024

Janus

A calmaria melancólica da rua dita o tom de como o dia será. De quando em vez um ou outro atrasado solta alguns fogos de artifício numa tentativa de resgatar a festança de algumas horas atrás. É manhã de ano novo e paira na atmosfera tranquilidade. Muitos estão em seus lares ou em lares de parentes embalados num sono profundo. Outros estão embebidos num sono profundo por terem exagerado na exaltação báquica. Nas ruas há poucos transeuntes: dois jovens fumam na praça, um morador de rua envereda cabisbaixo para lugar algum balbuciando algo ininteligível, maritacas gorjeiam numa árvore qualquer, um carro deixa a garagem guiado por um casal visivelmente alegre. A manhã de ano novo é estranha na completude da palavra. Carrega em si uma falta de pertencimento, é terra de ninguém. Pelo calendário não mais pertence ao ano que se findou, no entanto ainda não se configura como parte do alvorecer do janeiro que desponta. O primeiro dia do ano é uma ferida aberta no tempo que logo deve cicatrizar.

O dia desenrola-se em ritmo letárgico. O clima abafado do verão paulistano incomoda. O despertar é lento e enrolado e com isso o almoço fica para mais tarde. O êxtase do Réveillon agora cobra redobradamente em cansaço, mas se engana quem acha que a festa acabou. Dentro de cada um vibra um sentimento de esperança, a crença de que esse ano tudo será melhor. Nossas resoluções ainda estão fervendo em nossas mentes e a vontade de mudar tudo ao nosso redor ainda é latente. Não é risível como nos pautamos por um tempo abstrato e nos deixamos convencer que no começo de um novo ano tudo indica mudança? De uma segunda para uma terça qualquer esse mesmo sentimento esperançoso poderia inflar nossa alma. Mas como essa segunda não vem acompanhada do número 31 do mês de dezembro e tampouco a terça-feira é 1 de janeiro, são irrelevantes. No ano novo o futuro é a mais pura expectativa e não a usual frustração vindoura. A esperança da vida nova é um lembrete da nossa mortalidade e as metas são um protesto à mediocridade a qual nos sujeitamos. Todo dia é dia de mudar e por vezes a mudança até bate à nossa porta, mas estamos ocupados demais reclamando ou desistindo para girarmos a maçaneta. Assim, a vida passa rapidamente e sequer conseguimos contar quantas vezes deixamos de ser o melhor de nós, para delegarmos essa tarefa à meia-noite do 1 de janeiro.

O almoço é posto à mesa e com ele são servidas infindáveis piadas sobre a comida ser do ano passado. Uma cerveja aqui, outra ali, um resto de espumante e tudo vai sendo consumido. A família conversa com novos ares, sempre pisando em ovos com medo de importunar alguém e gerar um atrito justo nesse dia. Todos riem e confraternizam e pairam sobre as casas a doçura e a gentileza desaparecidas durante o ano inteiro. A sobremesa chega à mesa e é sempre um resto de pavê, mousse, pudim ou qualquer outro quitute caseiro que não serve a todos igualmente. A essa altura a louça que vem se acumulando desde a noite passada, ou melhor, desde ano passado, ganha considerável proporção. Mas ninguém está realmente disposto a lavá-la naquele momento. Caberá ao paladino da limpeza extirpá-la assim que o tamanho da pilha de pratos torne-se insustentável.

Acabada a refeição cada um presenteia-se com o ócio seja no sofá, na cama ou até mesmo no chão. A calmaria da rua toma conta dos lares. Absortos numa mistura de saudosismo e idealizações cada um reflete sobre sua vida, sobre o ano que passou e sobre tudo aquilo que o novo reserva-nos. Nesses instantes todos são Janus, divindade romana das transformações dotado de duas faces: uma virada para trás despedindo-se das coisas que se findam e outra que saúda o porvir. Janus é o atalaia dos portais por onde passam os mortais. Para viver é necessário transpor os umbrais de Janus em direção ao futuro. As resoluções agora já parecem mais distantes e menos concretizáveis.

Entre trovões esparsos e as massivas nuvens cinzentas que paulatinamente tomam conta dos céus, o sol despede-se no horizonte um tanto quanto a contragosto. Uma brisa fresca toca as janelas das casas e alguns minutos se passam até que o ventilador de teto se torne desnecessário e culpado de uma leve coriza. As camisetas tornam a vestir os corpos. O primeiro dia do ano vai se despedindo e com ele os comentários sobre como ele transcorreu depressa. Agora de fato o ano parece ter iniciado e finalmente a chaga no tempo foi devidamente cicatrizada.

Aos primeiros traços de estrelas no céu, diluvia e o clima arrefece. É na chuva de verão torrencial e rápida, que espalha a fragrância de terra molhada por onde quer que passe, que o primeiro dia do ano termina. Janus se despede e saúda a si próprio. A água lava as calçadas e fertiliza o futuro, mas com ela também se vai nossa memória. Amanhã nossas metas serão passado, obsoletas e inatingíveis. Restará a nós recorrer a sombra da nossa covardia cotidiana, a nossa adequação com aquilo que nos corrói pouco a pouco, a nossa conivência de sermos apenas esperançosos espectadores da nossa própria peça e termos de nos confortar com a tola fantasia de que tudo se resolverá. Talvez uma hora as coisas dêem certo. Talvez tudo se realize na manhã do ano que vem…

Autor:

Pedro Romero Sanches Batista

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