Em 31 de outubro de 1932 chegou aos cinemas dos Estados Unidos o filme White Zombie (Zumbi Branco), considerado a estreia dos zumbis na cultura pop. Inspirado levemente no livro The Magic Island, do jornalista William Seabrook, o longa acompanhava a história do casal Neil e Madeleine em viajem ao Haiti para visitar um amigo, Beaumont. Apaixonado por Madeleine, Beaumont recorre ao feiticeiro Lengender por ajuda. O feiticeiro, que usava seus poderes para reanimar mortos e os forçar a trabalhar em seu moinho de açúcar, mata Madeleine e a ressuscita, entregando-a a Beaumont. O filme não foi bem recebido pela crítica e a sugestão de necrofilia foi atacada pelos jornais, mas, em geral, fez certo sucesso comercial.
A “magia” e “misticismo” associado ao Haiti fascinava o estadunidense dos anos 1930. O livro de Seabrook, por exemplo, foi alvo de disputa entre editoras até ser publicado em 1929. O zumbi haitiano, no entanto, é distinto do moderno zumbi assassino e perigoso que conhecemos. Como conta a pesquisadora Louise Ferreira Carvalho em seu Breve História do Zumbi (2019), os zumbis caribenho não tinham intenção de atacar ninguém, alias, não tinham intenção alguma, eram vítimas de um feiticeiro e forçados a trabalhar eternamente nas lavouras. O medo não era de ser atacado por um zumbi, mas se tornar um. E o medo era tão real que não era incomum haitianos “matarem o cadáver” de um ente querido com um golpe na cabeça, para que não fosse reanimado. O livro de Seabrook relata sua visita ao Haiti e seu encontro com zumbis de verdade em uma plantação de Cana-de-Açúcar. Estes são descritos pelo jornalista como pessoas de olhar morto e movimentos automáticos. Eram homens doceis e alienados, trabalhando incessantemente. Seabrook, no entanto, não atribuiu o fenômeno a magia.
O terror como gênero (seja literário ou cinematográfico) é uma forma de vazão social para incertezas e inseguranças de uma sociedade. Só se produz terror sobre aquilo que gera medo e durante as décadas de 1920 e 1930, o cinema de terror nos Estados Unidos teve o seu auge. Só a Universal Studios levou para o cinema adaptações de Drácula, Frankenstein, A Múmia e outros monstros clássicos. O White Zombie chegou, portanto, num momento muito específico da história dos Estados Unidos e sua relação entre corpo morto e trabalho foi muito significativo.
Ao longo dos anos 1930 os Estados Unidos sofriam com a quebra da bolsa de 1929. Pessoas magras e abatidas aglomeravam-se em longas filas por pão e sopa. A taxa de desemprego chegou a mais de 50% e, em algumas regiões, a renda familiar caiu 60%. Além, a oferta de mão de obra e a escassez de serviços tornava a insegurança insuportável, valia tudo por um serviço e mais um pouco para manter o serviço. O medo de ser substituível ou pior, descartável, era real. Nesse contexto, o filme White Zombie apresentou ao público estadunidense o monstro moderno: O trabalhador
automato, morto por dentro, sem autonomia ou identidade, completamente entregue às ordens de seu senhor. O trabalho é um terror!
Já nos anos 1960, em meio ao efervescente cenário cultural de luta por direitos civis, feminismos, drogas, contracultura e mais, o zumbi foi remodelado. A obra A noite dos mortos-vivos (1968), de Cesar Romero, é tomado como marco inicial do novo zumbi carnívoro e animalesco. Deste então, o zumbi tornou-se um monstro recorrente na cultura pop, sendo usado como alegoria para o consumismo, para o medo da ciência ou do governo e mais. No entanto, próximo ao aniversário de 90 anos, os zumbis de White Zombie, não nos são mais representativos?
Na véspera do segundo turno das eleições presidenciais, o candidato Lula defendeu a regulamentação de direitos para trabalhadores de aplicativo. Lula afirmou:
“Esse pessoal que trabalha com aplicativo, esses caras precisam ter uma regulação, ele tem que ter jornada de trabalho, eles têm que ter descanso semanal remunerado, ele tem que ter algum direito, porque inventaram que eles são empreendedores, mas eles não são empreendedores. Se o cara bater o carro e quebrar, ele está ferrado, se ele se ferir, ele está ferrado. Então a gente precisa fazer uma regulação em que a gente garanta às pessoas um mínimo de seguridade social”
A fragilidade do trabalho tem sido um medo constante do trabalhador brasileiro. Na madrugada do dia 22 de setembro de 2020, o Rio de Janeiro sofreu com fortes chuvas. Uma cidade que tradicionalmente alaga amanheceu debaixo de água. Mas Roni, entregador de comida por aplicativo, foi imparável. Atravessou a rua Jardim Botânico em sua bicicleta para entregar sua encomenda na Gávea. “Bravo e guerreiro Rui”, disse a repórter do RJTV ao entrevistá-lo. Quando questionado, a responsa foi categórica “O aplicativo não ajuda a gente… se parar eles… eles bloqueiam a gente, tira a gente da corrida. É desse jeito…”
Em 2022 o Brasil testemunhou uma queda no número de desempregados, mas isso não significou um fortalecimento do mercado de trabalho. De acordo com dados do IBGE, embora o número de trabalhos formais tenha sim crescido, o número de pessoas trabalhando por conta própria aumentou de 213 mil em um trimestre para 25,869 milhões. A taxa de informalidade em agosto de 2022 é de 39,7%. Ou seja, quase 40 a cada 100 pessoas empregadas atuam na informalidade. Muitas sendo obrigadas a seguir pelas ruas alagadas e servirem automaticamente os mandos dos seus senhores feiticeiros. Como dizia o slogan do governo Temer: “Não pense em crise, trabalhe”. Trabalhe até morrer, e, se possível, um pouco mais.
Autor:
João Victor Uzer