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sexta-feira, 4 de julho de 2025

Mancha de café

É segunda-feira, seis e meia da manhã e o espirito que o paulistano acorda é a sensação
de constante atraso. Abrir os olhos, esticar o corpo e coçar o nariz. Logo em seguida começa as
decisões cruciais para o dia: Tomar ou não banho logo cedo, escovar os dentes enquanto
passa o café? Colocar uma roupa de bom tom para o dia. Será que chove? Ah….é São
Paulo, talvez chova ou talvez a seca do inverno perdure. O café termina de passar, os
dentes já estão escovados, a roupa e os sapatos colocados. Agora enquanto toma o café
lê as mensagens, e-mails, vê as notícias e últimas atualizações. Quando se dá conta já
está com um leve atraso, ou acha que já está com leve atraso. Na ânsia de pegar as
chaves e a bolsa, derrama um restinho de café da caneca no chão. O que dá para fazer é
olhar, praguejar e desviar do café. Nesse instante de olhadela para a mancha no chão
vêm mil pensamentos tão velozes quanto podem. “Eu poderia ter levantado mais cedo”,
“Se eu não tivesse demorado tanto para ler o e-mail…”, “Eu tenho que ler no
caminho…”, “Ninguém vai limpar isso ai, vai ficar até o anoitecer, já vai estar
grudento e possivelmente com cheiro de café velho até a noite”.

A mente tem esse poder impressionante de nos fazer mergulhar nela, nos fazer perder a
noção de tempo e espaço. No caminho para as devidas obrigações é um empurra daqui,
empurra dali, sobe o ônibus. Desce o ônibus. Entra no metrô. Esbarra em uma senhora
com uma cara mais azeda do que o café no chão, do outro lado uma estudante colegial
faz uma bola com o chiclete, “Uma hora dessas, chiclete?” O cheiro de uma colônia de
segunda invade as narinas e incomoda. Vem o segundo praguejo do dia. De repente a
mancha de café vem à mente, “Qual o melhor produto para limpar? Ah..que se dane,
água e sabão dão conta”. Desce do metrô. Sobe escada, esbarra em alguém. Terceira
praga do dia. Encontra-se no centro, o dia está parecendo que vai clarear bem, apesar de
que do outro lado está um pouco cinza, para contrastar com o vermelho e laranja tão
vibrantes do nascer do sol.

Finalmente chega ao destino. Telefonemas. Papeis. Correria. Estuda algo. Pega algumas
páginas de um livro. Folheia outra coisa qualquer. Paga uma conta. Vê pessoas. Pensa
na mancha de café. Atende telefone. Quarta praga do dia. Pensa na mancha de café.
Conversa com um superior. Corre pelo corredor. Entrega relatório. Tenta traduzir um
texto, afinal para quê? Finalmente a pausa para o almoço. Conversa. Lê. Atende mais
uma ligação, dessa vez é uma atendente de telemarketing que força demais a voz para
parecer animada. Mais e-mails. Notícias. Trabalho. Vê preços na internet. Corre para o
curso de especialização, precisa do metrô de novo. Já são quase seis e pode ouvir o
trânsito sufocante e quente de onde esta. Corre no mercado. Pega metrô. Corre de novo.
Quinta praga do dia. Pensa na mancha de café.

Agora corre para o outro lado da rua para tomar o ônibus. Desengonçadamente se
equilibra com as compras no ônibus. Sinaliza. Desce. Finalmente em casa. Coloca as
compras no chão da sala, a bolsa joga no sofá velho, tira o salto e corre para lavar a mão
e tirar a máscara do rosto. Pensa na Covid. Lava o rosto, tira a maquiagem. Volta para a
sala tira o blazer e joga no sofá. Pega as compras e vai para cozinha e finalmente
reencontra a mancha de café no chão, que tanto permeou o consciente e o
subconsciente. Faz uma careta e tenta guardar a pequena compra solitária. Tenta
reproduzir uma receita que leu na internet mais cedo, enquanto come um pedaço de
chocolate. Lava a louça, seca e guarda. Finalmente volta-se para a mancha de café e se
julga desastrada. Para alguém nessa cidade a mancha de café tem algum significado
místico e com toda certeza iriam ligar ao signo ou outra explicação mirabolante.
“Besteira e tolices”. Joga água, sabão e limpa, como imaginou… Estava com cheiro de
café velho.

Após passar o pano no chão, ajeitar a sala e tomar banho foi pegar novamente o livro
que está lendo. Passou algumas páginas. Ligou a TV, passou uns instantes. Depois de
um episódio, voltou ao livro. Já é tarde. Vai fumar um cigarro, fuma apenas um por dia,
sempre com as janelas abertas, olhando de seu apartamento a cidade de São Paulo. Não
está tão longe do centro. A noite está bonita e a cidade menos barulhenta. Está quente, o
cheiro de noite impregna o ar. Ascende o cigarro. Traga. Alguns segundos, e uma
fumaça sobe que vem junto com pensamentos aleatórios. “O gás está caro”, “Amanhã
tenho mais um trabalho”, “Não enviei a encomenda ainda”, “Preciso de calcinhas
novas”, “Os políticos são uma merda”. Mais um trago. Mais uma coluna de fumaça e
mais pensamentos. “Tenho que ligar para ele…” ”Tenho que ligar pra ela” ” Final de
semana quero ir ao museu”, “Mancha de café no chão”…..A última fumaça vai, a
bituca vai para o cinzeiro. Parece que está mais cansada do que nunca, vai para a cama.
Deixa a janela aberta, ela gosta do cheiro e do leve ruído da cidade a noite. Puxa o
edredom, “Não vai ter mancha de café amanhã…”

Autora:

Jéssica Rosa De Matos

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