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terça-feira, 30 de julho de 2024

A Invisibilizada Inteligência Feminina?

Linda K. Silverman é uma conceituada psicóloga que pesquisa sobre altas habilidades, popularmente conhecidas como superdotação ou pela sigla AH/SD. Em 2012, ela lançou um livro chamado Giftedness 101, no qual ela define algumas categorias que ela denomina como superdotação invisível, enumerando os grupos que são mais difíceis de serem identificados e que, possivelmente, a maioria nunca será. Dentro destes grupos, ela inclui as mulheres, defendendo que além de todas as dificuldades que os demais grupos enfrenta, elas são compelidas, pela sociedade a esconder suas altas habilidades.

É importante saber que não existem estudos que apontem diferenças contundentes entre o número de homens e mulheres AH/SD, mas o número de varões identificados é significativamente superior ao de pessoas pertencentes ao gênero feminino. Pesquisadoras como Silverman explicam este fenômeno pela dificuldade em perceber a  superdotação de mulheres; além disso, elas tendem muito mais a sofrer com a Síndrome do impostor, duvidando de sua própria capacidade e tendendo a esconder suas habilidades.

            Outra explicação é a herança histórica de como a inteligência feminina era percebida e como é retratada até os dias atuais. A possibilidade de sua existência sempre foi negada e, se ser inteligente não está permitido, quem dirá a possibilidade de terem inteligência muito acima da média: impossível! Ou uma anomalia, quiçá?

Peréz e Peréz destacam o apagamento histórico da mulher superdotada, indicando que quando se tinha conhecimento de uma mulher possivelmente inteligente, indicava-se que elas teriam “atributos masculinos”, uma vez que a inteligência só brotava em cérebros varonis. Por esta razão, costumavam serem considerados indivíduos andrógenos e não mulheres, dentro desta perspectiva da mente frágil e vazia típicas do ser feminino.

A história está repleta destes apagamentos. Muitas mulheres, por exemplo, foram queimadas como bruxas pelo simples fato de serem capazes de ler. Dizia-se que mulheres tinham mentes ocas e só um pacto com o demônio lhes permitiria desenvolver tal habilidade. Muitas outras chegaram a serem internadas em institutos psiquiátricos, consideradas como loucas ou qualquer outra sorte que evitasse a percepção social da inteligência feminil.

Forçadas a escreverem às escondidas e parecem tontas, grandes escritoras, como Mary Ann Evans (George Eliot), tiveram que esconder-se atrás de pseudônimos masculinos ao longo de séculos. E mesmo depois que se lhes foi permitida a escrita, elas continuaram sendo obrigadas a esconderem-se atrás de suas iniciais para protegerem-se do rechaço machista das editoras e do público ao identificarem a escrita do “gênero feminino”. E isto é algo que continua acontecendo até hoje.

O impacto de nascer designada mulher, gera prejuízos aplastantes na vida destes indivíduos. A pressão social para encaixar-se e comportar-se “como mulher” é muito maior. Não se lhes toleram comportamentos atípicos, elas sofrem mais bullying e muito mais críticas. Suas ações são analisadas, questionadas, verificadas, cobradas e reavaliadas a todo instante.

É o grupo que constantemente precisa provar sua capacidade e ainda assim é referido como mera sorte. Diante disto, como uma mulher conseguiria se reconhecer como AH/SD, se isto poderia indicar que elas seriam diferentes de seus pares? As estimativas atuais apontam que 75% das mulheres com altas habilidades não acreditam que possam ter inteligência superior, quanto mais acreditarem em sua inteligência que, de fato, é muito superior à media; e quase dois terços delas, escondem suas capacidades.

A principal característica da superdotação é ferozmente reprimida ainda na infância: não se aceitam meninas questionadoras, curiosas, que especulam e exploram; isto é inconsistente com o papel social da mulher e deve ser combatido em suas primeiras aparições. Logo, o instinto indagador vai atrofiando, ao mesmo tempo que o medo lhes é imposto, reduzindo também sua abertura a experiências, essencial para o desenvolvimento de suas altas habilidades. É como se elas fossem borboletas presas em casulos que não lhes cabem, mas que são impedidas de abrir suas asas e sairem dali.

À medida que crescem, estas barreiras só aumentam: elas devem não apenas comportarem-se como o esperado, mas buscar um casamento, ter filhos e cuidá-los, bem como assumir as responsabilidades domésticas. Sua personalidade vai sendo apagada, o brilho vai diminuindo… A percepção de que seu sucesso causaria rejeição e a impossibilidade de constituir uma família, inferi-lhes uma escolha que nunca é imposta aos homens.

Nesta mesma complexidade, Peréz e Peréz apontam que uma característica determinante, na superdotação feminina, é o excesso de autocrítica e a constante e exorbitante preocupação com os demais, tomando para si mesmas a responsabilidade de agradar sempre todos ao redor, de garantir sua felicidade e a harmonia do entorno, colocando-se sempre em último lugar e, muitas vezes, esquecendo-se totalmente de si. Ainda assim, elas continuam sendo AH/SD, o que significa uma forte intensidade emocional predominante. Noutras palavras, elas sentem isto de modo físico, na pele, na carne, nos ossos; sentem as marcas destas cobranças, desta repressão que lhes é imposta.

O abalo na autoestima é latente, gera insegurança e o excessivo sentimento de rejeição. A impossibilidade de poderem ser quem de fato são, somada à constante dúvida de sua própria inteligência, costumeiramente lhes resulta em transtornos do humor, como a depressão, a ansiedade generalizada e a bipolaridade que dificilmente apresentarão melhorias sem a autoaceitação de suas altas habilidades. Mas como aceitá-las se são constantemente rechaçadas? Se não conseguem sentirem-se pertencentes a nenhum lugar?

Quero terminar este artigo te convidando a uma reflexão: de olhos fechados, tente concentrar-se e responder a estas perguntas: quantas histórias de mulheres superdotadas você já viu na tevê e no cinema? Como elas foram representadas? Quantas mulheres são referências para você em produções de qualidade (arte, ciências, política etc.)? Sinta-se à vontade para compartilhar suas impressões nos comentários.

Referências:
S. G. Peréz e B. Peréz A mulher com altas habilidades/superdotação: à procura de uma identidade, 2012.
L. R. Kruczeveski e S. Mariano, Os desafios na educação de mulheres com altas habilidades/superdotação, 2020.
C. Costa, As escritoras que tiveram de usar pseudônimos masculinos – e agora serão lidas com seus nomes verdadeiros, 2018.
A.M.P. Agua y M.L.S. Gutierrez, La Superdotación y el Genero, 2002.
C.M.M. Ogeda, K.M. Pedro e M.C.M. Chacon, Gênero e superdotação: um olhar para a representação feminina, 2017.
M. Perrot, Os Excluídos da História: operários, mulheres, prisioneiros, 1992.
L. K. Silverman, Giftedness 101, 2012.

Autora:

Morgana Marinho é ativista neurofeminista, escritora, advogada, historiadora, e pesquisadora latino-americana. Entre os anos de 2020 e 2021 foi identificada como autista e superdotada, aos 34 anos.

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