Um dos temas que mais me interessa trabalhar em meus estudos é justamente o que é ser mulher.
Preguiçosa (e algo preconceituosamente) se atribui a feminilidade aos órgãos genitais. Assim, são ditas “mulheres” as pessoas com vagina. Às vezes, se leva em conta o útero, haja visto que as cirurgias de adequação de gênero se tornaram uma realidade na última década.
Contudo, desejo ir além disso e pensar que a mulher ainda não foi, por inteiro, definida. O que temos é uma sombra do Falo: um não-lugar dado ao “segundo sexo”. Notem que, se digo segundo, é porque há um primeiro, além de haverem incontáveis terceiros, quartos e quintos sexos mundo a fora.
Parafraseando Gênesis, a mulher deriva do homem para o mundo cristão. Logo, se o homem é a medida do universal, a mulher é uma (des)medida: uma exceção incompreensível à regra divina. Além, é claro, de ser Ela quem simbolicamente traz consigo a maldição para a humanidade.
Obviamente isso é uma sustentação baseada no amor cego que a fé provoca quando em mãos inadequadas para o preconceito e o ódio imanentes.
Como tudo o que é profundamente humano, a feminilidade é alvo de desprezo. Digo-o assim, pois a mulher (simbolicamente) é tida como: fraca, emocionada, sensível, superficial instável. Isso é um construto histórico que vêm de séculos de misoginia. A herança remonta de longe, desde os gregos atenienses, passando pelos romanos e se deliciando nos povos semitas, de onde partiu o Cristianismo primitivo.
Vemos, então, como nascer com vagina e útero traz consigo todo um legado histórico de ideias e arquétipos alocados como uma régua ditando a existência de corpos femininos.
Entretanto, para além disso, recentemente, o mundo se tem espantado com a ruptura de seu próprio palacete de vidro promovida simplesmente pelo conhecimento da existência de pessoas transgênero.
A mente conservadora contrai-se como uma tartaruga no seu casco e se treme epilepticamente diante da verdade de um mundo que apenas não cabe dentro da imagem gerada do mundo. E aqui, lembremos, que apenas falo sobre transgeneridade.
Isso nos mostra algo fundamental, que é a necessidade de deixarmos de engendrar miríades de fantasias para o que nos cerca e começarmos a olhar a realidade da vida sem julga-la.
Não há respostas e nem perguntas. O que há é o mundo, que vai ocorrendo não conosco, mas apesar de nós. A vida e o gênero são só engenhos de uma espécie ignota num mundo minúsculo em uma galáxia insignificante.
Quiçá, a noção de nossa pequenez nos ajude a aceitar melhor que cada sujeito é um sujeito e a ninguém cabe mudá-lo ou controla-lo.
O resto? O resto é nossa atonicidade perante o mundo.
Autoria:
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Ariel Von Ocker é escritora, psicanalista, poliglota e acadêmica de Letras e História. Também já trabalhou no teatro como dramaturga e atriz. Autora com três livros publicados, atua desenvolvendo pesquisas na área da psicanálise, literatura sob perspectivas historiográficas e estudos de gênero.Atualmente se dedica também às artes plásticas através da iniciativa Projeto Simbiose, no qual atua no núcleo de direção em parceria com Michelle Diehl e Cristina Soares, além de ser editora chefe da Revista Ikebana.
Contato: @ariel_von_ocker