Tem família que preza as tradições, coisa que os recém chegados ao grupo desconhecem. Devia ter lei obrigando a pessoa a declarar ao namorado, amigo, ficante ou amante, todos os rituais e maluquices que integram o pacote. Armando Rolo descobriu isso na raça!
Conheceu Angélica no Cabaré, não leu as entrelinhas e não atentou para as letras miúdas do contrato. Gostou da bela estampa, das curvas e ignorou o fato de que namorar é como comprar CD (lembram do CD, LP?). Por causa de 2 ou 3 músicas, você tem de levar o disco inteiro, repleto de tranqueira.
Conheceu a família dela e deu um desconto para a sogra rabugenta, o irmão mala e o pai ogro. Ogro com ele, mas mansinho perto da esposa. Até o Meleca, o Poodle da Angélica, não vai com sua cara. Chega de boa, cheira, demarca território na barra da calça e sai de fininho. Mas isso não é nada perto da tradição de fim de ano da parentada.
Todos os anos, a família de Angélica se reúne na casa de Sara Vaz, mãe de Santo e sua avó materna. Tios, primos e anexos somam umas 40 pessoas. Até aí, tudo bem. Uma ou duas horas tolerando a parentada, mas Angélica vale a pena. Lêdo engano.
Matriculado num Supletivo a distância só para ter carteira de estudante, faz entregas para o tráfico e mora no sótão do Cabaré em que conheceu Angélica, na Freguesia do Ó, com copa e banheiro em baixo e quarto em cima. Seu carro está no pátio do Detran por multas não pagas e há um mês ele operou a fimose. Foi à casa de Sara Vaz, não viu Angélica e metade do povo o olhava de soslaio. Tudo muito quieto e formal. Parecia reunião da Igreja.
Logo começaram as perguntas: Trabalha com quê? Quanto ganha? Que carro você tem? Você é gay? As primas solteironas especulavam se já transaram. Finalmente Angélica apareceu, mas o ritual estava para começar e a conversa ficou para depois. Ele pensou numa prece curta e em seguida atacar a farta mesa, mas não imaginou que 3 religiões iriam orar, fora as longas palavras de Sara Vaz. Após 50 minutos de preces e cantorias, Armando Rolo pensou em comer, livrar-se da trupe e cair fora para namorar, mas Sara Vaz interveio:
– Temos um recém-chegado. A tradição manda que se apresente, responda as perguntas e então direi se está ou não aprovado.
A sabatina foi mais tensa do que a de indicado para Ministro do STF. Armando mirou Angélica, que desviou o olhar, com cara de culpa. Ela devia ter avisado. De repente, viu-se no centro da roda e o massacre começou. Mas malandro raiz não se intimida. Armando Rolo estufou o peito e encarou a parentada sedenta por sangue.
– Trabalha com o quê?
– Sou operador logístico de produtos importados controlados.
– Quanto você ganha?
– Mais do que preciso, menos do que mereço. Sem limites e isento de IR.
– Não vimos seu carro. Onde deixou?
– Está num estacionamento público, caro e bem vigiado.
– Onde você mora?
– Na Distinta Clientela da 4ª Vogal. Numa cobertura duplex e com lazer de primeira no piso térreo.
– Estuda alguma coisa?
– Cursos suplementares a distância.
– Tem tatuagem?
– Tenho, sim, mas numa região discreta.
– Engraçadinho – disse uma prima. Podemos saber o que você tatuou lá?
– A História da Civilização. Mas aí tive de operar a Fimose e perdi toda a parte depois da 2ª Guerra.
Angélica riu, as solteironas suspiraram, Sara Vaz e os tios ficaram furiosos, mas deixaram passar. Aí o cunhado “mala” lascou perguntas que causaram apreensão, pois envolviam temas proibidos nos encontros familiares. Dois enormes tabus:
– Qual é sua religião?
– Não tenho religião. Acho religião uma baboseira para tirar dinheiro dos trouxas.
– Você é de Direita ou Esquerda?
– Sou anarquista. Não tem partido que preste. Esquerda, só chupim. Direita, desmiolados. No Centro, tudo Maria vai com as outras.
Tumulto geral! Estavam presentes adeptos de 3 religiões e 2 grupos políticos rivais. Foram socos, pontapés, garrafadas, cadeiras voando e sangue para todo lado. A polícia chegou e prendeu Armando Rolo, conhecido como Brasinha, multi-condenado e foragido da Justiça.
No final, nem tudo foi ruim. A ceia no presídio foi boa, graças às ONGs defensoras das vítimas da sociedade. Brasinha, tem cela isolada com privilégios garantidos pela Facção. Recebe Auxílio Detenção, mora melhor que no “duplex”, trabalha em cela working e recebe visita íntima da Angélica, sem sogra, sogro ou cunhado mala para perturbar. Não sabe se ela continua no Cabaré e ela não sabe que ele tem outras visitas íntimas. Todo casal tem seus segredinhos, não é? O advogado disse que o Brasinha deve sair em 8 meses, mas ele prefere continuar morando lá. Mais seguro e confortável.


Que Que maravilha de malandro, Laerte!
Verdade, Solange. Obrigado pelo comentário. Abs