No imaginário brasileiro, poucas figuras evocam tanto temor quanto Exu. Basta a visão de um tridente, uma capa preta ou um oferenda na encruzilhada para que séculos de catequese colonial venham à tona. Mas, antes de qualquer julgamento precipitado, convido o leitor a despir-se, por um instante, dos dogmas arraigados e a olhar para essa figura através de uma lente histórica e filosófica, e não apenas teológica. O que encontraremos não é o “Diabo”, mas uma chave de leitura fundamental para entender a própria vida.
A demonização de Exu não foi um acidente, mas uma construção
A complexidade de Exu não cabe na gaveta estreita do dualismo entre Deus e o Diabo. Alguns podem apontar a irreverência característica dessa entidade como prova de sua suposta maldade ou periculosidade. Porém, é preciso compreender a sofisticação desse pensamento: na cosmovisão iorubá, essa provocação serve justamente para quebrar a estagnação. Exu tensiona a realidade para forçar a evolução. Não é o mal pelo mal, mas é através desta aparente desordem que se viabiliza uma nova ordem. Sem o imprevisto que Exú traz, o mundo seria estático, estéril e sem vida.
No entanto, missionários e colonizadores, operando na lógica da linha reta e do controle absoluto, não souberam lidar com essa divindade dinâmica. Autores contemporâneos, como os historiadores Luiz Antonio Simas e Luiz Rufino, argumentam em obras como Fogo no Mato que o projeto colonial tentou apagar a “pedagogia das encruzilhadas”. Para a mentalidade ocidental, o sagrado precisa ser solene e previsível. Exu, sendo o senhor do mercado, da rua e da gargalhada, desafiava essa lógica de dominação. A solução encontrada foi demonizá-lo.
Nesse sentido, o sociólogo Roger Bastide já alertava que o sincretismo e as traduções culturais muitas vezes serviram como máscaras. Ao traduzir Exú como o antagonista bíblico, criou-se uma justificativa moral para perseguir a cultura negra. Quando um terreiro é atacado hoje, o agressor não está apenas combatendo um dogma diferente; está atacando uma filosofia que ele desconhece: a de que o Sagrado também habita na transformação.
Precisamos corrigir essa visão histórica nas escolas e na mídia
Por fim,O Brasil só será um país verdadeiramente democrático quando perder o medo da encruzilhada. Porque, ao contrário do que pregaram os colonizadores, na encruzilhada não mora o inimigo; mora a possibilidade de encontro e de movimento. Exú não fecha portas; quem as fecha é a intolerância de quem teme a busca pelo conhecimento e transformação.
* Pai Lucas de Xangô é Sacerdote e Diretor da FENARC ( Federação Espiritualista Nacional Afro-Religiosa e Cultural),escritor e ativista da valorização das religiões de matriz africana no Rio Grande do Sul.
Referências Bibliográficas:
- Pierre Verger (Orixás)
- Luiz Antonio Simas & Luiz Rufino (Fogo no Mato / A Ciência Encantada das Macumbas)
- Roger Bastide (As Religiões Africanas no Brasil)
- Contexto Histórico Geral: A menção aos missionários refere-se ao fato histórico de que a bíblia traduzida para o Iorubá (pelo bispo Samuel Crowther) usou a palavra “Eshu” para traduzir “Diabo”, selando o erro de tradução que dura até hoje.

