O uso de material didático digital vem ganhando espaço nas escolas brasileiras, suscitando debates sobre o futuro dos livros escolares de papel. Em um cenário de crescente digitalização, aplicativos e sites educacionais começam a substituir os livros físicos em algumas redes de ensino. Mas até que ponto as telas podem, ou devem, tomar o lugar das páginas? A resposta passa por dados concretos sobre essa transição, opiniões de pais, alunos, professores, autores e da indústria editorial, e pela análise dos benefícios e malefícios envolvidos nessa mudança no ensino básico e médio, tanto em escolas públicas quanto particulares.
Da sala de aula conectada à mochila digital
Nas últimas décadas, a infraestrutura tecnológica das escolas evoluiu significativamente. Hoje, 94% das escolas de ensino fundamental e médio no Brasil têm acesso à internet, segundo a pesquisa TIC Educação de 2022. Após a pandemia de Covid-19, esse número cresceu inclusive em áreas rurais, de 52% em 2020 para 85% em 2022, resultado de esforços para conectar escolas remotas. Contudo, apenas 58% das escolas possuem computador ou tablet com internet disponível para uso dos alunos. Ou seja, pouco mais da metade das instituições realmente dispõe de dispositivos para que estudantes acessem conteúdos digitais, evidenciando um hiato entre estar “conectada” e oferecer de fato recursos tecnológicos em sala de aula.
A pressão pela digitalização se intensificou durante o ensino remoto emergencial de 2020. Sem poder frequentar a sala de aula, muitos alunos brasileiros tiveram de acompanhar as aulas online como podiam: 39% deles usando o próprio smartphone. Outros 31% dependeram do celular de algum familiar. Apenas 2% dos pais relataram que os filhos receberam um laptop ou tablet da escola naquele período. Essa experiência escancarou tanto o potencial das plataformas digitais para manter o aprendizado, quanto às desigualdades de acesso, crianças assistindo aulas pela tela minúscula de um telefone e dividindo pacotes de dados da família.
Diante desse cenário, governos e escolas aceleraram as iniciativas de inclusão digital. Já em 2013, o Ministério da Educação (MEC) distribuiu tablets a professores do ensino médio público e anunciou a oferta de livros didáticos digitais no PNLD a partir de 2015. Mais recentemente, programas estaduais e federais têm investido na entrega de dispositivos diretamente aos alunos.
Em outubro de 2025, por exemplo, o MEC destinou R$275 milhões à compra de tablets e chips de internet para o Maranhão, distribuindo 242 mil aparelhos a estudantes do ensino médio como parte da Estratégia Nacional de Escolas Conectadas. Ações semelhantes ocorrem em estados como Ceará, Bahia e Sergipe. A mensagem das autoridades é clara: “Estamos vivendo no mundo da tecnologia; é importante que as escolas estejam conectadas”, defendeu o ministro Camilo Santana.
Com os tablets em mãos, os alunos podem acessar vídeos, bibliotecas virtuais e plataformas de ensino a distância do MEC, como o AVA MEC. É importante notar, porém, que mesmo nesses programas a substituição total dos livros de papel não é o objetivo declarado. “Esse projeto não vem para substituir o livro, mas sim para ser um aliado”, destacou o estudante Gilson Silva ao receber seu tablet em Imperatriz (MA).
A tecnologia é apresentada como um complemento destinado a enriquecer as fontes de pesquisa e ampliar o acesso ao conhecimento, não como um adeus definitivo aos tradicionais livros impressos.
Um experimento em São Paulo acende o debate
Se, por um lado, a transição digital avança gradualmente, por outro, tentativas de acelerá-la de forma brusca têm enfrentado forte resistência. O caso mais emblemático ocorreu no estado de São Paulo, em 2023, quando o governo anunciou que deixaria de distribuir livros didáticos impressos para alunos do 6º ano do ensino fundamental à 3ª série do ensino médio, adotando conteúdo 100% digital nessas séries. Na prática, isso significou recusar cerca de 10 milhões de livros gratuitos do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) oferecidos pelo MEC. Em vez dos materiais aprovados nacionalmente, a Secretaria Estadual de Educação planejou utilizar conteúdos digitais próprios, acessados via tablets e telas nas salas de aula.
A reação foi imediata. Professores, alunos e especialistas criticaram duramente a iniciativa, apontando diversos problemas. Um dos pontos centrais foi a falta de infraestrutura tecnológica nas escolas. “Minha escola fica em uma região em que o sinal de internet costuma ser péssimo”, relatou um professor de História da rede estadual paulista. Muitas instituições não tinham conectividade adequada nem equipamentos suficientes para todos os estudantes.
Na mesma reportagem, a estudante Ana Vitória, de 15 anos, contou: “Há lugares em que a internet não funciona. Querem deixar tudo digital, mas a escola em si não tem conectividade para todo mundo.” Além disso, faltavam dispositivos: “Os alunos usam os próprios celulares para as tarefas; quando fui roubada e fiquei sem celular, atrasei matéria por uma semana”, relatou, evidenciando o risco de exclusão para quem não tem acesso constante à tecnologia.
Outra crítica recorrente foi a baixa qualidade pedagógica do material digital proposto. Educadores afirmaram que a secretaria ofereceu apenas apostilas em PDF ou apresentações de slides simplificadas, em vez de plataformas interativas. “É uma espécie de apostila parecida com slides, com conteúdo defasado de 15 anos, e querem que os alunos anotem isso de uma TV ou datashow”, reclamou uma professora de Português, acrescentando que o material nem seguia a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) vigente. A promessa de inovação acabou, segundo os docentes, reduzida ao conceito de “uma grande TV” transmitindo slides enquanto os alunos copiavam o conteúdo no caderno, oferecendo pouco avanço em relação ao ensino tradicional.
Diante da enxurrada de críticas, o governador Tarcísio de Freitas recuou poucos dias depois. A solução encontrada foi combinar os formatos: passou-se a garantir a impressão e distribuição das apostilas estaduais, em paralelo ao uso dos tablets. “O aluno vai ter o tablet e o material impresso disponíveis. Vai no gosto do freguês”, declarou Tarcísio, prometendo ambas as opções aos estudantes.
O Ministério Público de São Paulo chegou a abrir um inquérito questionando a recusa dos livros do MEC e a legalidade de impor exclusivamente conteúdos digitais às escolas. No fim de setembro de 2023, o próprio secretário Renato Feder admitiu publicamente que abandonar os livros do PNLD foi “um dos grandes erros” de sua carreira. Reconheceu que a decisão “não era inteligente” e reverteu a política, retomando a participação do estado no programa federal.
O episódio paulista serviu de alerta nacional. Ele demonstrou que a digitalização total, sem planejamento adequado, pode aprofundar desigualdades e comprometer a qualidade do ensino. A coordenadora Theresa Adrião, da Unicamp, destacou que simplesmente substituir o suporte físico pelo digital é um equívoco quando se ignora o contexto escolar: “O livro, a leitura em papel, a possibilidade de reler, grifar e percorrer página por página são estratégias fundamentais para a formação do leitor. Essas práticas não têm substitutos.”
Para ela, os recursos digitais devem, sim, ser incorporados, mas com o objetivo de enriquecer a experiência, como simuladores de ciência ou vídeos sobre aquecimento global, e não de abolir definitivamente os livros impressos.
O caso de São Paulo acabou reforçando um consenso: no curto prazo, o futuro da educação básica não tende a ser “100% digital” nem “100% papel”, mas um modelo híbrido que combine o melhor dos dois mundos.
O que dizem professores e alunos na ponta
Nas salas de aula, quem lida diretamente com os materiais, docentes e estudantes, desenvolve percepções muito práticas sobre as diferenças entre livros físicos e digitais. De modo geral, professores valorizam o livro didático impresso como um aliado insubstituível no cotidiano escolar. “A tecnologia é sempre bem-vinda, mas não dá para desconsiderar o livro didático. Ele é essencial para o aprendizado do aluno”, afirma Everton Souza, professor de Geografia em uma escola estadual paulista. Outros educadores concordam e definem o livro de papel como o “principal suporte pedagógico” dos estudantes, pois ali está todo o conteúdo programático que será trabalhado durante o ano. Há também um aspecto de familiaridade e autonomia: com o livro físico em mãos, o aluno sabe manusear, carregar, fazer anotações e revisitar trechos com facilidade, habilidades fundamentais para o estudo. “O livro impresso é algo com que o aluno já está familiarizado e pode carregar para onde quiser; é um material simples”, ressalta o professor de História Leonardo Felix.
Docentes de disciplinas visuais, como Geografia e Ciências, também apontam limitações do digital: mapas, gráficos e imagens complexas muitas vezes têm melhor visualização no papel, que permite examinar detalhes de perto, diferentemente da projeção em uma tela distante. “Pela TV, a visualização para os alunos é ruim”, comenta Everton Souza ao relatar o uso de slides em suas aulas. Por outro lado, diversos professores reconhecem que o tempo de aula pode render mais com recursos digitais bem implementados, já que vídeos, músicas e simulações podem ser integrados rapidamente. No Colégio Piaget (SP), que adotou tablets no ensino médio, a professora Sandra Petracco conta que antes gastava vários minutos conectando TV, DVD, projetor e pen drives para exibir um filme ou música. Agora, com o conteúdo digital no tablet, “tenho todos os recursos com um toque.
Com isso, tenho mais tempo para circular pela classe e interagir com os alunos”. Assim, quando a infraestrutura funciona, o digital pode agilizar a didática e aumentar o engajamento. “O envolvimento da turma numa aula com tablet é visivelmente maior”, observa Silvana Rodrigues, diretora pedagógica de outra escola, destacando o interesse que os recursos multimídia despertam.
No entanto, há um consenso importante entre os educadores: os dispositivos digitais não funcionam sem infraestrutura e preparo adequados. “Estamos numa fase inicial, avaliando como e quando usar”, afirmou a coordenadora de tecnologia do Colégio Bandeirantes (SP), que adotou livros digitais de forma experimental. Em muitas escolas públicas, essa fase inicial sequer começou, devido a problemas básicos de conectividade e falta de equipamentos para todos os alunos. Mesmo entre escolas particulares pioneiras, a opção predominante tem sido a cautela: introduzir tablets gradualmente, em poucas turmas ou disciplinas, mantendo os livros impressos em paralelo. Como destacou a Revista Época em reportagem sobre colégios que adotaram o digital, “nenhuma das escolas abandonou o livro impresso, nem pensa que algum dia isso acontecerá”. Ou seja, mesmo onde a tecnologia é mais abundante, o papel permanece fundamental.
Entre os estudantes, as opiniões variam conforme a experiência e as condições individuais. Muitos jovens, acostumados desde cedo aos smartphones, veem vantagens nos recursos digitais: pesquisar instantaneamente na internet, assistir a vídeos explicativos e carregar todos os livros em um único tablet, evitando mochilas pesadas. Por outro lado, vários alunos reconhecem maior dificuldade de concentração ao estudar por telas. “Eu consigo me concentrar muito mais usando o livro didático”, afirma Laura Men, 16 anos, ao comentar a mudança implementada em São Paulo. Ela relata que, ao estudar no digital, se sente mais “dispersa” e lembra que, em sua escola anterior, os professores sempre recomendavam retornar à leitura do livro para sanar dúvidas.
O professor Daniel Sanches confirma essa percepção: “O foco demasiado na tecnologia digital acaba tirando a atenção do aluno, a concentração”. Segundo ele, é comum ver estudantes mais dispersos quando todo o conteúdo vem de telas, reforçando a ideia de que o material impresso ajuda a manter os alunos nos trilhos, servindo como uma referência estável. Diversos professores, como Sanches, defendem que o digital seja utilizado como complemento, e não substituto, do conteúdo impresso, pelo menos até que questões de atenção, autocontrole e disciplina no uso das telas sejam plenamente resolvidas.
Outro ponto levantado pelos jovens é a dependência de equipamentos pessoais. Em escolas públicas, não é raro que os alunos utilizem o próprio celular para realizar atividades online passadas pelos professores. Isso pode funcionar, mas qualquer imprevisto, como um aparelho quebrado, roubado ou sem acesso à internet, torna-se um obstáculo sério para o aprendizado, problema inexistente quando se utiliza o livro de papel fornecido pela escola ou pelo governo. “Quando fiquei sem celular, atrasei matéria de uma semana”, relatou a estudante anteriormente citada. Além disso, muitas escolas ainda proíbem o uso de celular em sala, para evitar distrações ou acessos indevidos.
De fato, 61% dos alunos afirmaram que sua escola proíbe o uso de telefones celulares, e 46% disseram que a instituição bloqueia o acesso dos estudantes à internet, medidas compreensíveis, mas que também limitam o potencial pedagógico desses dispositivos. Essa contradição revela que as escolas ainda buscam, de forma gradual e cautelosa, entender como (e se) integrar às telas ao cotidiano acadêmico.
Preocupações de pais e especialistas com o excesso de telas
As famílias e profissionais de saúde trazem outra dimensão importante ao debate: o impacto do tempo de tela no desenvolvimento infantil e juvenil. A ampliação de dispositivos digitais nas escolas se soma a uma realidade em que crianças e adolescentes já passam muitas horas por dia diante de celulares, tablets, computadores e TVs em suas vidas pessoais. De acordo com a pesquisa TIC Kids Online, 93% dos brasileiros de 9 a 17 anos são usuários de internet, o que corresponde a mais de 22 milhões de crianças e adolescentes conectados. Esse envolvimento precoce com tecnologia levanta alertas. A Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) vêm advertindo sobre os riscos do uso excessivo de telas para a saúde mental e física. Problemas como sedentarismo, distúrbios do sono, dificuldades de socialização e até atrasos no desenvolvimento da linguagem têm sido associados ao consumo exagerado de mídias digitais na infância.
As recomendações oficiais são rígidas: crianças menores de 2 anos não devem ter acesso nenhum a dispositivos eletrônicos; de 2 a 5 anos, no máximo 1 hora por dia; de 6 a 10 anos, até 2 horas diárias. No mundo todo, alguns países adotaram políticas para limitar essas exposições, Taiwan, por exemplo, possui lei restringindo o tempo de uso de eletrônicos por crianças e adolescentes, e China e Coreia do Sul impõem controles semelhantes. A Suécia, após anos investindo pesado em educação digital, surpreendeu ao dar um passo atrás recentemente: decidiu retomar os livros impressos nas escolas e reduzir o uso de tecnologia para alunos jovens, após estudos apontarem piora na compreensão leitora das crianças suecas entre 2016 e 2021. Os especialistas de lá concluíram que o meio de leitura influencia a aprendizagem, e que a leitura somente em telas estava prejudicando a assimilação profunda de textos.
No Brasil, muitos pais e educadores compartilham dessas preocupações. “Tirem as telas da frente de seus filhos” clama o escritor Ilan Brenman, um dos maiores autores de literatura infantil do país, em alerta aos perigos das telas na primeira infância. Ele ressalta que os malefícios vão além de problemas oculares ou postura: o bombardeio digital pode comprometer a aprendizagem linguística, a atenção e as relações sociais das crianças. Pediatras como Daniel Becker enfatizam a necessidade de interação humana real para um desenvolvimento saudável, “criança precisa de convivência olho no olho”, disse Becker em entrevista, lembrando que ninguém imagina uma criança saudável trancada com um tablet, mas sim brincando ao ar livre ou no colo de alguém.
Os pais também se preocupam com o conteúdo acessado online e a segurança. Com livros impressos, fica mais fácil controlar o que o filho está lendo; já no ambiente digital, é necessário monitorar aplicativos, bloquear distrações e garantir que o uso seja realmente educativo. Especialistas em educação, como Bruna Dias, defendem que a imersão digital das crianças precisa ser equilibrada: “Nem toda criança tem acesso ao ambiente digital, deve existir um equilíbrio, estimulando também o tato e experiências fora das telas”. Ela ressalta que o digital faz parte do universo infantil moderno, mas de forma híbrida. Ou seja, pais e escolas devem dosar, aproveitar o potencial motivador das ferramentas tecnológicas sem abdicar do desenvolvimento proporcionado pelas atividades tradicionais, da leitura no papel às brincadeiras offline.
Há ainda um aspecto econômico citado por famílias: a digitalização sem apoio público pode significar custos adicionais. Em escolas particulares, surgiram casos onde foi exigida a compra de tablets caros e licenças de conteúdos digitais, sobrecarregando o orçamento familiar. Em 2012, um projeto de lei chegou ao Congresso propondo proibir que escolas exigissem substituir livros por tablets, a menos que fornecessem os dispositivos aos alunos sem custo. O autor, dep. Márcio Marinho, apontou que muitas instituições adotavam tablets “porque estão na moda” e que isso tornava o material didático ainda mais caro para alunos e pais. A preocupação procede: enquanto o livro impresso pode ser reutilizado ou repassado, o digital frequentemente envolve assinaturas e aparelhos que se tornam obsoletos rapidamente. Assim, do ponto de vista das famílias, a migração para o digital só é bem-vinda se vier acompanhada de inclusão digital equitativa, isto é, garantindo acesso universal a dispositivos, internet de qualidade e orientação de uso.
Autores e editores diante da transformação
Para os autores de livros didáticos e a indústria editorial acadêmica, a chegada do mundo digital representa tanto um desafio quanto uma oportunidade. Por um lado, editoras tradicionais de didáticos, que por décadas prosperaram imprimindo milhões de livros para escolas, tiveram de adaptar seus modelos de negócio. Hoje, praticamente todo grande grupo editorial educacional já oferece versões digitais de suas coleções e plataformas de aprendizagem online integradas aos livros. O mercado de conteúdo digital educativo vem crescendo: em 2022, o faturamento das editoras com vendas de conteúdo digital aumentou 35% no Brasil, impulsionado sobretudo pela adoção de plataformas educacionais digitais no segmento de didáticos. Ainda assim, o digital representou somente 6% do total do mercado editorial naquele ano. Ou seja, 94% da receita ainda vem dos materiais impressos, o que indica que a supremacia do papel permanece, embora a tendência de crescimento das soluções digitais seja consistente.
Um ponto sensível para editoras e autores é garantir que a qualidade pedagógica seja preservada durante essa transição. A produção de um livro didático eficaz envolve anos de pesquisa, alinhamento cuidadoso ao currículo e revisão realizada por especialistas. “Não se produz [um bom material] de uma hora para outra; não é apenas um conjunto de apresentações em PowerPoint ou textos justapostos”, explica Kátia Smole, ex-secretária de Educação Básica e diretora do Instituto Reúna.
Ela destaca que o PNLD desenvolveu, ao longo do tempo, um rigoroso sistema de avaliação de livros didáticos, verificando se há erros de informação, preconceitos ou lacunas relevantes. Esse processo acabou educando editoras e autores sobre o que caracteriza uma obra de qualidade. Transpor esse cuidado para o ambiente digital é um desafio, especialmente quando novas plataformas e conteúdos são criados fora dos editais tradicionais.
O episódio das “apostilas digitais” em São Paulo ilustra esse risco. Ao tentar substituir o material das editoras por conteúdos próprios produzidos às pressas, a Secretaria de Educação enfrentou críticas por falhas e desatualização. A principal lição é que a forma, seja papel ou tela, não garante qualidade; o conteúdo, em qualquer meio, precisa ser bem estruturado.
Por outro lado, o universo digital também abre possibilidades criativas para autores e empresas. Livros didáticos digitais modernos podem incorporar recursos multimídia e interativos impensáveis no papel: vídeos, áudios, simulações em 3D, animações de gráficos, exercícios autocorretivos, links para fontes externas confiáveis e atualizações constantes. Professores conseguem, em algumas plataformas, monitorar em tempo real o desempenho dos alunos, ver quanto tempo passavam em cada atividade e quais dúvidas tiveram, permitindo intervenções mais rápidas. Há relatos de que sistemas digitais permitem personalizar o ensino, por exemplo, um aluno visual aprende melhor com um infográfico interativo, enquanto outro prefere um texto explicativo, e assim por diante. Essas funcionalidades estão começando a ser usadas em sistemas de ensino privados e devem se expandir no futuro.
Mesmo assim, os editores admitem que o “potencial dos livros digitais ainda está longe da atual realidade das salas de aula”. Falta integrar de fato todo esse poder tecnológico ao cotidiano das escolas de maneira prática. Além disso, existem preocupações com pirataria e direitos autorais, conteúdos digitais são mais facilmente copiados e compartilhados ilegalmente do que livros físicos, pondo em risco a sustentabilidade econômica das publicações educativas (tanto que o SNEL, sindicato das editoras, lançou campanhas de combate à pirataria digital de livros). Assim, a indústria acadêmica caminha numa linha tênue: investe em inovação digital, mas sem abandonar o impresso, e busca formas de equilibrar a democratização do acesso com a viabilidade financeira e pedagógica.
Do ponto de vista de autores e escritores, especialmente aqueles que produzem obras literárias e paradidáticas usadas nas escolas, existe também uma preocupação de ordem cultural. Muitos temem que a leitura profunda, aquela experiência quase imersiva proporcionada por um livro físico, se perca em meio à fluidez das telas.
A neurocientista Maryanne Wolf, referência internacional em estudos sobre leitura, observa que as experiências de leitura no impresso e no digital são, de fato, distintas: no papel, tendemos a ler com maior concentração, enquanto nas telas a leitura costuma ser mais superficial e dispersiva. Ela e outros pesquisadores apontam que o livro físico oferece pistas sensoriais e espaciais que ajudam o cérebro a assimilar melhor o conteúdo, como segurar o volume, perceber quantas páginas faltam ou lembrar se um trecho estava no topo da página esquerda, por exemplo. Esses elementos favorecem a memorização e a compreensão profunda do texto.
Um estudo citado pela revista VEJA reforça essa diferença. Jovens que leram o mesmo conto em versão impressa e digital tiveram níveis semelhantes de compreensão do enredo, mas aqueles que utilizaram o livro físico lembraram melhor a ordem cronológica dos acontecimentos. Nesse aspecto, o papel “superou” o digital, especialmente no que se refere à organização lógica da narrativa.
Os cientistas explicam que as telas, por sua própria natureza, estimulam o scrolling e a fragmentação, enquanto o livro físico favorece a construção mental do texto como um “mapa” contínuo, algo que contribui diretamente para a compreensão mais profunda e estruturada da leitura.
Não por acaso, pesquisas de preferência costumam mostrar apego ao livro físico. A última edição da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil (2020) revelou que 70% dos leitores brasileiros preferem livros físicos quando questionados sobre obras literárias. Entre estudantes universitários ao redor do mundo, levantamentos indicam porcentagens igualmente altas (acima de 90%) que preferem estudar por textos impressos em vez de digitais para leituras mais longas ou complexas. Embora as novas gerações sejam nativas digitais, isso não significou o fim do livro impresso, possivelmente porque cada formato atende a necessidades diferentes. Autores destacam que formar leitores proficientes depende também de cultivar a habilidade de leitura atenta, e o impresso tem se mostrado um meio propício a isso. Ao mesmo tempo, muitos reconhecem o valor de incluir elementos digitais que possam complementar a leitura e engajar alunos com linguagens mais interativas.
Vantagens e desafios dos livros digitais na educação
À luz de todas essas perspectivas, quais são afinal os principais benefícios e malefícios da migração para livros acadêmicos digitais? De um lado, enumeram-se vantagens concretas:
- Interatividade e engajamento: Conteúdos digitais podem incluir vídeos, simulações, jogos educacionais e quizzes instantâneos. Essas funcionalidades capturam a atenção dos estudantes e podem tornar a aprendizagem mais dinâmica e divertida. Pesquisadores observam que o envolvimento da turma em aulas com tablets tende a ser maior, com alunos mais motivados pelo formato multimídia. Aplicativos de realidade aumentada, por exemplo, permitem explorar conceitos complexos de forma visual e prática, o que favorece o pensamento abstrato e o raciocínio em disciplinas como ciências naturais.
- Atualização constante: Diferente dos livros físicos, cuja edição pode demorar anos para ser revisada, materiais em plataformas online podem ser atualizados em tempo real. Isso é útil para corrigir erros rapidamente ou incluir os temas mais recentes (por exemplo, dados atualizados de geografia e atualidades históricas). Também possibilita personalizar conteúdos de acordo com mudanças no currículo oficial quase que imediatamente.
- Portabilidade e acesso a acervos amplos: Um tablet ou notebook pode carregar centenas de livros e recursos. Alunos não precisam mais levar mochilas pesadas; todo o material cabe em um dispositivo leve. Além disso, com internet, eles têm ao alcance inúmeras fontes: bibliotecas digitais, enciclopédias, artigos científicos, ampliando as referências além do livro-texto. A função de busca eletrônica em e-books facilita encontrar rapidamente um tópico ou palavra-chave, o que ajuda em revisões e estudos direcionados.
- Monitoramento e adaptação individualizada: Plataformas educacionais coletam dados do uso pelos estudantes (tempo de leitura, acertos e erros, páginas mais consultadas). Com essas estatísticas, os professores podem identificar quais alunos estão com dificuldade e em quais tópicos, intervindo mais cedo. Também é possível recomendar atividades extras personalizadas, por exemplo, um aluno que não foi bem em frações recebe exercícios adicionais nesse assunto, enquanto outro avança para desafios mais complexos. Esse ensino adaptativo promete atender diferentes ritmos e estilos de aprendizagem dentro da mesma sala.
- Economia de longo prazo e sustentabilidade: Em teoria, conteúdos digitais poderiam reduzir custos de impressão e distribuição de livros didáticos, especialmente para governos que compram milhões de exemplares. Após o investimento inicial em dispositivos, a atualização de um livro digital pode ser mais barata do que produzir uma nova tiragem impressa a cada ano. Há também a questão ecológica: menos papel, menos recursos naturais consumidos, menos livros descartados ou encalhados. Contudo, aqui cabe uma ressalva, a economia só se concretiza se houver infraestrutura tecnológica acessível a todos; caso contrário, os custos apenas mudam de lugar (do papel para o silício).
Por outro lado, os desafios e potenciais malefícios também são significativos:
- Distrações e superficialidade na leitura: Um tablet educacional não deixa de ser um dispositivo multifuncional. Mesmo com bloqueios a jogos e redes sociais (como os tablets do MEC, configurados para uso exclusivamente educacional), a própria natureza da tela, com notificações, hiperlinks e multitarefa, pode desviar a concentração. Estudos comparativos indicam que a leitura em telas tende a ser mais superficial e fragmentada, enquanto no papel o leitor mergulha mais profundamente no texto. Alunos e professores relatam mais dispersão com materiais digitais. A alternância rápida entre aplicativos e a scrollagem contínua podem prejudicar a memorização da sequência e dos detalhes do conteúdo.
- Excesso de tempo de tela e saúde: O aumento das atividades em telas na escola soma-se ao já longo tempo que crianças e jovens passam em dispositivos em casa. O uso excessivo está associado a problemas de visão, sedentarismo, ansiedade e déficit de atenção, segundo alerta a Organização Mundial da Saúde. Especialistas em desenvolvimento infantil enfatizam que nada substitui plenamente experiências concretas, como manusear objetos, escrever à mão ou interagir socialmente face a face, para o desenvolvimento cognitivo e socioemocional equilibrado. Assim, migrar toda a aprendizagem para plataformas digitais pode agravar esses malefícios caso não haja controle rigoroso de dosagem e qualidade de uso.
- Desigualdade de acesso (divisão digital): Talvez o maior risco no contexto brasileiro seja aprofundar a desigualdade educacional. Nem todos os alunos têm conexão banda larga ou um dispositivo apropriado em casa. Mesmo nas escolas, vimos que muitas públicas dependem de laboratórios limitados ou do celular do aluno. Se o conteúdo didático ficar predominantemente online, estudantes de regiões ou famílias com menos recursos podem ficar para trás. “Nem toda criança tem acesso ao ambiente digital, infelizmente ele não é democratizado ainda”, lembra a especialista Bruna Dias. Sem um amplo programa de inclusão digital (distribuição de equipamentos, garantia de internet gratuita, suporte técnico), a substituição dos livros impressos por digitais poderia excluir justamente os alunos mais vulneráveis, aqueles que, paradoxalmente, mais precisam de materiais pedagógicos de qualidade fornecidos pela escola.
- Custo e manutenção dos equipamentos: Implementar tablets ou notebooks para cada aluno envolve investimento pesado e contínuo. Os aparelhos quebram, tornam-se obsoletos em poucos anos e exigem manutenção. Quem arcará com essas despesas, governos, escolas ou famílias? No setor público, isso pode significar altos gastos de dinheiro público; no privado, mensalidades mais altas ou exigência de compras caras pelos pais (o que já gerou insatisfação e projetos de lei visando coibir abusos). Além disso, há o custo invisível da infraestrutura: conectar todas as salas com Wi-Fi robusto, servidores para hospedar plataformas, capacitar profissionais de TI para dar suporte às escolas. Sem planejamento, a conta da digitalização pode surpreender e comprometer orçamentos, desviando recursos de outras áreas da educação.
- Qualidade pedagógica e preparo docente: Não basta trocar o livro físico por um tablet, é preciso conteúdo digital de qualidade e professores preparados para usá-lo. Se a migração não vier acompanhada de capacitação docente, corre-se o risco de uma implementação pró forma, em que o tablet vira só um projetor de PDFs, como ocorreu inicialmente em São Paulo. O verdadeiro ganho pedagógico só ocorre quando o professor integra as novas mídias de forma planejada, algo que demanda treinamento e tempo para adaptação. “O professor nunca teve um papel tão essencial quanto agora”, diz Cesar Nunes, consultor de tecnologia educacional, enfatizando que o sucesso do livro digital depende da atuação do professor como mediador ativo. A necessidade de formação continuada é crucial: muitos docentes ainda se sentem inseguros no uso de aplicativos e ferramentas interativas, e sem apoio podem acabar evitando a tecnologia ou usando-a de forma limitada.
Em resumo, os livros digitais trazem promessas reais de inovação pedagógica, mas também levantam obstáculos práticos e pedagógicos que não podem ser ignorados. Cada vantagem tende a vir acompanhada de um contraponto que precisa ser gerenciado. O engajamento aumenta, mas é preciso redobrar a atenção para garantir a concentração e o aprendizado profundo. Acesso a informação se amplia, mas deve-se ensinar pensamento crítico para navegar o excesso de dados online. Tudo isso requer uma abordagem equilibrada.
Um futuro híbrido para os livros acadêmicos
Diante de todo esse panorama, qual direção se desenha para o futuro dos livros acadêmicos no Brasil? A tendência, ao que tudo indica, não é um cenário de extremismos (nem o desaparecimento total do livro impresso, nem a rejeição às ferramentas digitais). Em vez disso, o caminho que ganha força é o modelo híbrido, que combina o melhor dos dois mundos, telas e páginas trabalhando lado a lado para enriquecer a educação.
Nas escolas brasileiras, especialmente do ensino básico e médio, o livro didático físico ainda cumpre funções insubstituíveis: ele iguala o ponto de partida (todos os alunos recebem o mesmo material gratuitamente na rede pública, garantindo equidade), serve de referência estável e sequenciada para estudos, e não depende de energia, login ou sinal para ser utilizado. Por essas razões, a curto e médio prazo, o livro de papel deve continuar sendo um pilar do processo educativo, sobretudo em contextos com restrições de conectividade. Como observou a professora Theresa Adrião, práticas tradicionais como ler, folhear, grifar e voltar páginas são fundamentais na formação do leitor e “essas práticas não têm substitutos” diretos no digital.
Por outro lado, ignorar o potencial do mundo digital seria um desperdício enorme. As novas gerações já vivem conectadas e precisam desenvolver competências digitais para o século XXI. Aplicar tecnologias educacionais de forma inteligente pode turbinar a aprendizagem, possibilitar experimentações virtuais, acesso a conteúdo global, inclusão de alunos com diferentes estilos de aprendizado e maior eficiência no acompanhamento pedagógico. A chave está em integrar esses recursos sem perder de vista a inclusão e a qualidade. Isso significa políticas públicas que forneçam infraestrutura (como o programa de tablets e internet do MEC, condicionado a não substituir, mas somar ao livro), treinamento docente intensivo no uso de tecnologias e envolvimento da comunidade escolar (pais e alunos) na construção de um ambiente digital saudável.
Outra lição importante é a necessidade de avaliação contínua. Assim como a Suécia revisou sua estratégia após indicadores mostrarem piora na leitura com excesso de telas, o Brasil também deve monitorar os impactos das mudanças. Projetos piloto com livros digitais devem vir acompanhados de pesquisas sobre desempenho dos alunos, níveis de compreensão e aceitação por parte da comunidade. Cada etapa de inovação precisa ser avaliada: O encantamento inicial com gadgets se traduz em melhora de notas? Onde não, por quê? Será preciso ajustar a rota, e isso exige métricas e transparência.
No diálogo entre educadores, uma expressão que surge com frequência é “tecnologia com intencionalidade pedagógica”. Ou seja, não digitalizar por modismo ou economia aparente, mas sim quando há um propósito claro de melhorar o ensino. A experiência de escolas particulares brasileiras indica cautela: elas introduziram tablets de forma gradativa, mantendo a “opção dos professores” sobre usar ou não, conforme fizesse sentido para o aprendizado do aluno. Esse respeito ao contexto e à autonomia docente é fundamental. Afinal, a figura do professor continua central: é ele quem mediará o uso do livro, seja físico ou digital, para que não seja apenas mais um recurso, mas um caminho para o conhecimento.
Em conclusão, o futuro dos livros acadêmicos no Brasil provavelmente não verá nem o fim do impresso nem uma vitória incontestável do digital. O que se desenha é uma convivência cada vez mais integrada entre os dois formatos. Os livros didáticos impressos, aprimorados e alinhados ao currículo, continuarão a orientar os estudos e a oferecer segurança cognitiva aos alunos. Paralelamente, os conteúdos digitais tendem a evoluir para complementar essas obras com recursos multimídia, exercícios adaptativos, atualizações constantes e outras inovações que apoiem e motivem o aprendizado.
Pais, estudantes, professores, autores e o próprio setor editorial parecem concordar em um ponto essencial: o melhor caminho é aproveitar o que cada suporte tem de mais forte. Em vez de uma disputa entre papel e tela, a educação brasileira caminha para se beneficiar da cooperação entre ambos.
Como disse um estudante ao celebrar a chegada de novos tablets, a tecnologia deve existir “não para substituir o livro, mas para ser um aliado”. Assim, a escola do futuro poderá ter menos peso na mochila e mais conexão, sem perder de vista que, independentemente do formato, o fundamental é garantir a todos os alunos acesso ao conhecimento e ao prazer de aprender, seja folheando um capítulo ou clicando em um link.
Referência:
COMITÊ GESTOR DA INTERNET NO BRASIL (CGI.br). Pesquisa TIC Educação 2022. Disponível em: https://www.cgi.br. Acesso em: dia mês ano.
CNN BRASIL. 39% dos alunos usam o próprio smartphone para acompanhar as aulas online. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br. Acesso em: dia mês ano.
PORVIR. Qual o papel do material didático, impresso ou digital? Reportagem sobre o caso de São Paulo, 2023. Disponível em: https://porvir.org. Acesso em: dia mês ano.
METRÓPOLES. “Principal suporte pedagógico”: professores e alunos criticam fim de livros didáticos em SP. Disponível em: https://www.metropoles.com. Acesso em: dia mês ano.
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