Nos últimos anos, o Brasil vem registrando números alarmantes de intolerância religiosa. Durante o ano de 2024, a Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos documentou que as religiões de matriz africana foram alvo principal de discriminação religiosa, com 151 denúncias envolvendo praticantes de umbanda. Esse cenário não é novo: em 2021, as notificações contra religiões de matriz africana cresceram acima de 270%, passando de 86 casos em 2020 para 244 em 2021. O que torna essa realidade ainda mais preocupante é o fato de que essas denúncias representam apenas a “ponta do iceberg”. Inúmeros casos de discriminação não são reportados, reforçando uma estrutura histórica de perseguição que remonta aos tempos coloniais.
Como Pai de Santo que há anos trabalha nas escolas municipais levando educação sobre Umbanda, posso afirmar com certeza: a mudança é possível, e ela começa na educação.
O Racismo Religioso Como Estrutura Social
É fundamental compreender que a intolerância contra religiões afro-brasileiras não se resume a simples preferência religiosa. Trata-se de racismo religioso — uma forma de discriminação que une preconceito racial com perseguição religiosa. O racismo religioso não apenas cerceia a liberdade de crença, mas representa uma discriminação racial e estrutural contra religiões tradicionais de povos negros. Essa violência se direciona não apenas aos indivíduos, mas também aos territórios sagrados, tradições e ao patrimônio cultural dessas denominações.
A maioria das vítimas dessa discriminação são mulheres, que registraram 1.423 denúncias em 2024, demonstrando uma interseccionalidade entre gênero, raça e religião que intensifica a vulnerabilidade.
Tudo isso eu sabia na teoria. Mas foi quando comecei a entrar nas salas de aula das escolas municipais que essa realidade ganhou rosto, voz e coração.
Quando a Escola se Torna Espaço de Transformação
Tudo começou quando uma Diretora de entrou em contato comigo. A Escola estava trabalhando com seus alunos sobre a cultura afro-brasileira, e percebeu que faltava algo essencial: a voz viva, autêntica, de quem realmente vive e pratica a religião. Fiz minha primeira palestra com receio. Confesso que estava nervoso. Seria bem recebido? Os alunos me respeitariam?
Mas quando entrei naquela sala de aula, tudo mudou. Os olhos dos adolescentes brilharam de curiosidade. Não havia hostilidade — havia fome de conhecimento.
As escolas públicas brasileiras, paradoxalmente, têm funcionado tanto como espaços de reprodução de intolerância quanto como potenciais locais de transformação. Pesquisas demonstram que docentes enfrentam resistência de alunos de outros segmentos religiosos ao estudar cientificamente a cultura africana, sendo frequentemente confrontados pelo fundamentalismo religioso. Além disso, práticas como a falta de representação das religiões de matriz africana na biblioteca escolar já caracterizam a instituição educacional como intolerante.
Mas quando pude entrar nessas salas de aula como educador, percebi que havia um caminho diferente: a implementação do ensino das religiões de matriz africana contribui para a redução da intolerância religiosa. E eu estava vendo isso acontecer em tempo real.
As Descobertas Mais Bonitas Quando Educamos com Autenticidade

A primeira coisa que percebi ao ir para as escolas foi algo inesperado: muitos alunos já tinham perguntas guardadas há anos. Perguntas que nunca podiam fazer em casa por medo de represálias de famílias religiosas intolerantes. Questões simples, mas profundas: O que é Umbanda de verdade? É macumba? Por que meu colega não pode falar sobre sua fé?
Quando comecei a responder essas perguntas com clareza, com respeito e com a riqueza de conhecimento que acumulei ao longo do tempo, algo transformador acontecia. Vi alunos que entravam com preconceitos arraigados saírem da sala com uma compreensão completamente diferente. Vi meninas pretas reconhecerem sua herança com orgulho. Vi meninos de afirmando: “Quer dizer que Umbanda é sobre harmonia com a natureza e respeito aos ancestrais? Quero seguir esta Religião!”
Uma das experiências mais tocantes foi quando um aluno me abordou após a palestra com lágrimas nos olhos: “Meu tio é de religião, mas eu tinha vergonha disso. Minha avó sempre dizia que era coisa do diabo. Agora entendo que é uma religião verdadeira, com história, com valores.”
Momentos como esse me fazem entender por que é tão urgente que façamos isso. Não é apenas educação religiosa — é cura. É permitir que crianças e adolescentes reconheçam a dignidade de suas verdadeiras raízes, sua ancestralidade, um marco inegável do Brasil.
O Poder Transformador da Pedagogia Autêntica
Descobri que contar histórias é muito mais eficaz do que qualquer livro didático. Quando explico sobre os Guias e Orixás, não falo como alguém lendo um manual — falo sobre a relação real que tenho com eles, sobre como a sabedoria ancestral ainda orienta nossas vidas hoje. Falo sobre Xangô e justiça, sobre Oxum e amor, sobre Ogum e coragem. Os professores me contaram depois que aquela palestra permanecia viva nos diálogos dos alunos por semanas.
Uma professora me relatou que após minhas palestras, a escola deixou de registrar episódios de bullying religioso. Não desapareceram completamente — preconceito é estrutural — mas diminuíram significativamente. Isso não é acaso. Isso é educação funcionando como resistência.
Marcos Legais Como Fundamento, Mas a Voz Viva Como Motor
O Brasil possui ferramentas legais que fundamentam e permitem essa educação. A Lei 10.639/03 completou 22 anos em 2025 e permanece como um marco no enfrentamento do racismo estrutural. Essa legislação tornou obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira em todas as instituições de ensino fundamental e médio, públicas e privadas, ampliando o reconhecimento das contribuições culturais, sociais e econômicas da população afro-brasileira.
As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais representam um avanço crucial, permitindo que escolas públicas, por meio de gestores e docentes, explorem a diversidade religiosa existente no Brasil com objetivo educacional — não doutrinário — de promover conhecimento sobre diferentes religiões, ressaltar sua importância e seus valores.
Mas aqui está o diferencial que observo na prática: não é suficiente ter a lei. Precisamos da presença viva nas escolas. Não se trata de doutrinação ou proselitismo. Levar para a sala de aula informações sobre as religiões de origem africana, suas diferenças, origens, práticas e valores, ditas por quem as vive, caracteriza-se como uma prática educativa legítima que possibilita acesso ao conhecimento e redução da discriminação religiosa.
Pesquisas em municípios brasileiros que implementam adequadamente a Lei 10.639/03 demonstram que essa educação “amplia o respeito pelo outro e o fortalecimento das relações, afetando estudantes, professores e familiares”. A transformação vai além dos muros da escola: quando estudantes aprendem sobre a riqueza das religiões afro-brasileiras com autenticidade, essa mudança se propaga para suas famílias e comunidades.
Os Desafios Que Não Nos Detêm
Claro, não é tudo fácil. Em algumas escolas, senti a tensão de educadores preocupados com represálias de famílias fundamentalistas. Sei que houve pais que reclamaram. Descobri que adaptar meu discurso para ser pedagógico, não doutrinário foi essencial. Não vou para converter ninguém — vou para educar. Falo sobre história, sobre valores, sobre a riqueza cultural. Deixo claro que cada um tem liberdade de crença, e isso é sagrado.
Essa abordagem desarmou muito preconceito. Até pessoas que vinham com resistência reconheciam: “Ah, entendi. Você está aqui para ensinar sobre sua religião como parte da história e cultura brasileira, não para impor algo.”
As escolas ocupam um papel estratégico nessa transformação. Como instituições mais próximas das comunidades locais, possuem capacidade de gerar impacto direto na redução da discriminação. Porém, enfrentam desafios consideráveis: falta de formação continuada sobre o tema, orçamentos insuficientes, resistência institucional e a pressão de grupos fundamentalistas. Mas esses desafios não são intransponíveis — são oportunidades para educadores e religiosos atuarem juntos.
Implementar adequadamente o ensino sobre religiões de matriz africana demanda investimento em capacitação , desenvolvimento de materiais didáticos apropriados, transformação das práticas pedagógicas e trabalho intersetorial com famílias e comunidades. E essa é uma responsabilidade que precisa ser compartilhada entre poder público, comunidade escolar e lideranças religiosas.
O Reflexo na Comunidade e o Futuro que Podemos Construir
O mais bonito é que essas mudanças não ficam apenas na escola. Alunos voltam para casa e conversam com familiares. Pais recebem trabalhos escolares sobre Umbanda e curiosamente abrem suas mentes. Vi situações em que famílias inteiras começaram a respeitar praticantes de religiões de matriz africana.
Em um contexto onde religiões afro-brasileiras enfrentam ataques que crescem 270% em comparação com períodos anteriores, silenciar nas escolas é estar conivente com a discriminação. O conhecimento é a ferramenta mais poderosa contra o preconceito.
Hoje, vejo minha presença nas escolas como uma extensão do meu trabalho espiritual. No terreiro, cuido de vidas através da espiritualidade. Na escola, cuido de vidas através da educação e do respeito. Ambas são formas de servir.
Tenho convites regularmente. Escolas das mais variadas classes e regiões. E em cada uma delas, vejo o mesmo padrão: curiosidade respeitosa, abertura genuína e transformação.
Alunos que depois me encontram nas ruas e me abraçam dizendo: “Aquela palestra sua mudou meu jeito de pensar” confirmam que estou no caminho certo. Meu convite a outros pais e mães de santo é simples: vamos para as escolas. Não temos medo. Temos conhecimento, temos história, temos dignidade.
Uma Necessidade Urgente, Uma Responsabilidade Compartilhada
As escolas municipais têm a responsabilidade de ser espaços de acolhimento, respeito à diversidade e produção de conhecimento fundamentado. Inserir o ensino sobre religiões de matriz africana no currículo é cumprir a lei, mas, fundamentalmente, é proteger estudantes, valorizar identidades e construir uma sociedade mais justa e democrática.
Quando a escola abraça essa responsabilidade, e quando pais e mães de santo aparecem para compartilhar suas vidas, suas histórias, seus saberes, toda a comunidade se transforma.
Sonho com um Brasil onde levar Umbanda para a escola seja tão natural quanto falar de qualquer outra disciplina. Um Brasil onde crianças negras vejam pessoas como eu na educação formal e entendam que sua religião é parte valiosa de sua identidade. Um Brasil onde preconceito religioso seja combatido não apenas pela lei, mas pela educação viva, pelo conhecimento verdadeiro.
Não somos heróis por fazer isso. Apenas estamos cumprindo nosso dever como cidadãos e como seres espirituais comprometidos com a transformação. Mas o impacto é incalculável.
Cada aluno que sai de uma palestra com o coração mais aberto é uma vitória. Cada professor que se sente mais preparado para ensinar sobre nossas religiões é uma vitória. Cada família que deixa de discriminar por falta de conhecimento é uma vitória.
E enquanto houver crianças curiosas nas escolas, continuarei indo. Porque conhecimento é poder. E poder bem usado é transformação.
* Pai Lucas de Xangô é Sacerdote e Diretor da FENARC ( Federação Espiritualista Nacional Afro-Religiosa e Cultural),escritor e militante da valorização das religiões de matriz africana no Rio Grande do Sul.
