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quarta-feira, 5 de novembro de 2025

A ARTE ROMPE AS BARREIRAS DO SILÊNCIO

O Brasil tem uma relação complicada com sua própria história. Até hoje,
figuras públicas, de diferentes espectros, têm a ousadia de negar o inegável: o
golpe militar de 1964 e a ditadura que se seguiu. Para alguns, falar em ditadura
é exagero, como se a memória pudesse ser apagada com discursos
negacionistas. Não é à toa que vimos, há pouco tempo, bolsonaristas — muitas
vezes desinformados, radicais e de extrema-direita — saírem às ruas pedindo a
volta dos militares, como se o passado fosse algo romantizado. Um povo que
esquece sua história está condenado a tropeçar nos mesmos erros. E esses
erros, no caso do Brasil, têm um peso trágico: mortes, torturas, estupros de
mulheres grávidas, desaparecimentos.
Foi preciso que uma mulher de esquerda, ela própria vítima da brutalidade
da repressão, chegasse à Presidência para que a Comissão da Verdade fosse
criada e jogasse luz sobre esse período sombrio. Ainda assim, o Brasil não
construiu um museu ou um memorial dedicado a expor os horrores da ditadura.
Agora, no dia 15 de fevereiro, haverá um debate sobre a criação de um museu
memorial no antigo DOI-CODI do II Exército, no bairro Paraíso, em São Paulo.
O lugar, chamado de “sucursal do inferno” pelo torturador Brilhante Ustra —
idolatrado por Bolsonaro —, foi palco de barbáries contra cerca de 7 mil pessoas.
Dessas, 78 foram mortas por agentes do Estado. Essa história precisa ser
contada, para que nunca mais se repita. Como já dizia Mário Quintana: “O
passado não reconhece o seu lugar: está sempre presente…”. Por outro lado, a
esquerda brasileira, muitas vezes, parece se perder em críticas amargas.
Ouvi comentários de que o filme Ainda Estou Aqui seria “romanceado
demais”, que não escancara a ditadura e a tortura com a contundência que
alguns esperavam. Essa crítica, na verdade, ignora o maior trunfo do filme.
Dirigido com maestria por Walter Salles, que adaptou o brilhante livro de Marcelo
Rubens Paiva, o filme é uma história comovente, conduzida com sensibilidade
por Fernanda Torres e Selton Mello, com um momento especial de Fernanda
Montenegro que toca fundo e faz refletir.
O grande acerto de Ainda Estou Aqui está em contar a história de um jeito
que até quem prefere desviar o olhar da ditadura se sinta atraído. O filme não é
panfletário, e isso é sua força. Ele emociona, envolve e, mesmo assim, mantém
viva a memória daquele período. Cada matéria, cada debate, cada menção ao
filme traz a ditadura de volta à tona, explicando o contexto a quem assiste. No
discurso do prêmio Goya, com o mundo inteiro assistindo, a menção direta à
ditadura militar brasileira teve um impacto imenso — muito maior do que
qualquer abordagem mais explícita poderia ter.
Não ligo muito para essa história de Oscar, mas seria incrível se o filme
levasse a estatueta. Seria um tapa na cara dos políticos e da elite que, por tanto
tempo, varreram para debaixo do tapete as torturas, mortes, estupros e
desaparecimentos. Foi preciso o talento de um grupo de artistas, um escritor
brilhante e um diretor sensível para, através da arte, romper a bolha do silêncio.
A magia do cinema, mais uma vez, mostra seu poder de transformar e lembrar.
Reflexão: no sertão onde o sol é valente, e o silêncio se faz resistente, surge a
arte como um trovão, rasgando o véu da solidão. Pintor que desenha esperança,
cantador que embala a criança, poeta que rima o lamento, transforma o choro
em encantamento. O silêncio é muro sem cor, mas a arte é ponte de amor, que
liga o grito ao coração, e faz da dor uma canção. Na dança, o corpo se expressa,
na escultura, a alma confessa, no teatro, o mundo se revela, e a verdade se torna
novela. A arte é voz dos esquecidos, dos oprimidos, dos feridos, é bandeira que
nunca se cala, mesmo quando a censura se instala. Rompe as grades da mudez,
faz do gesto sua altivez, e onde há sombra e opressão, ela acende a luz da
expressão. Por isso, quem pinta ou declama, quem borda, quem canta, quem
ama, é guerreiro da liberdade, é guardião da humanidade.

Autor:

Professor Dr. José Rinaldo Domingos de Melo

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