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quarta-feira, 24 de julho de 2024

O corpo é território

            Meu intuito é discorrer sobre as possibilidades do indivíduo – um desafio, de fato, psicanalítico. Fá-lo-ei, no entanto, através de um método talvez estranho aos desconhecedores da clínica enquanto política. Vislumbrar as possibilidades do corpo é, também, investigar as performances possíveis. Note a diferença patente entre “metamorfose” e “performance”: não acredito o ser, qualquer que seja a abordagem ontológica, ser capaz de se transformar noutro. É, porém, pluripotente. Perceba, novamente, eu não ter dito “totipotente”, pois há o impossível. A inscrição do Outro é o objeto, enfim, do presente ensaio.

        O ser inato é uma ideia confrontada – e me arrisco a dizer superada – por diferentes pensadores da ontologia e da deontologia. A noção de dever ser corromperia, inclusive, a natureza arraigada ao indivíduo. O vir a ser – nomeadamente, “dasein” – torna plausível pensar num rolamento do indivíduo enquanto sujeito do tempo. A mudança é uma constante. Até o presente momento, nada novo; o evangelho ainda não deu às caras. O espaço-corpo coexiste com o espaço-tempo, ambos, também, dialogam com o Outro não inscrito; juntamente, a iminência de um outro do qual se suspeita causa o desconforto fundamental. Desconforto, mal estar e medo caminham junto.

           Quero frisar, caso não tenha sido lido nas entrelinhas, a bizarrice do corpo (i) ter de se tornar outro conforme a passagem do tempo, (ii) a recusa consciente e inconsciente de ser penetrado pelo Outro e (iii) o medo de ser ocupado e/ou colonizado pelo desconhecido. Dessa forma, pode-se dizer o corpo ser um território reivindicado por diversas potências. É o Afeganistão. Você, já velho de si mesmo, tolera ser o que é? Ou, no frisson da recusa, prende-se aos escombros do já destruído pelo tempo e, igualmente, já banalizado pelo Outro inapreensível?

             Falo, especificamente, do teatro emergir do palco vazio. Há de se ocupar com o corpo físico o espaço; lembro, no entanto, não ocupar ser uma escolha, e, portanto, uma forma de ocupação. Amesquinhar-se é ainda existir e estar. Internamente, no campo da história própria e do coletivo, urge se revisitar e extrair dali um novo desconhecido, inapreensível e estranho ao que se foi. Essa é a essência do teatro. Não há peça igual à outra. O que está em cartaz hoje, apesar de homônimo, é distinto do que estará em cartaz amanhã. Filosofia grega elementar revisitada pelos franceses.

             O que há de novo no ensaio parece ser introduzir a possibilidade não cênica de perceber e se utilizar do corpo como território. Saber o que nasce daquela terra e quais espécies não podem ser plantadas porque não vingariam é necessário para arar e fazer a rotação de cultura. Comer bem e diferente pressupõe o esforço de obter os ingredientes. O tipo de construção, as artes urbanas, a noite e as contradições da cidade devem ser entendidas tal qual na cidade-em-si quando no corpo-cidade. Sem celeuma, urbanismo e cenografia são saberes da alma.

           Se eu nada sou fixamente, meu self não existe? Existe. Quando disse, mais acima, sobre o corpo ser território pluripotente, não totipotente, exclui o que não pode estar inscrito. Esse conjunto finito, embora indeterminável de possibilidades, é o que distingue um indivíduo do outro, e, ao mesmo tempo, o que torna todos os indivíduos sujeitos à matemática dos conjuntos.

              Falta-me, muito provavelmente, didática ao apresentar as ideias. Gostaria de introduzir a identidade travesti como exemplo. Ser travesti é inscrever ambos os gêneros e foracluir cada um deles em separado. Ato contínuo, o tempo e o espaço latinoamericanos determinam a identidade, fazendo-a se revolver em seu próprio leito sem tornar a revolução do sólido um sintoma. Coexistir, noutro exemplo, criança e adulto no corpo geriátrico é saber o tempo ter passado; leia-se “o tempo ter passado” com “passado” como (i) verbo na locução e (ii) substantivo. O que sou é consequência do que fui mediada, porém, pela capacidade de olhar ao redor e de se autovisitar em mergulho.

             Da mesma forma que se nega vida à cidade com as leis higienistas, nega-se vida ao corpo com as normas caretas de permanência. Ser é possibilidade e performance. Existir é aceitar a contradição e o conforto de uma grande metrópole sabendo, porém, Nova Iorque ser muito diferente de São Paulo.

Autor:

 Arthur Dartagnan Chaves Dos Santos, acadêmico de Medicina – Escola de Medicina de Piracicaba/UAM.

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