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segunda-feira, 3 de novembro de 2025

Meu instante com Deus

Senhor, já que estamos a sós. Só nós dois, sem público, sem plateia, sem mesmo o rumor de pensamentos alheios. Agradeço-lhe, antes de mais nada, por este silêncio que nos envolve, onde posso enfim falar sem medo, sem reservas. Venho agradecer-lhe por tudo. Não é pouco o que recebi nessa jornada: os caminhos, as pessoas, as praias, as montanhas. Vivi cada dia com alegria e respeito. Procurei não estragar nada, juro. Nada de incêndios, nada de lixo — essa mania humana de transformar o sublime em inviável —, sempre fui cuidadoso, consciente de que tudo isso, esse cenário onde vivo e respiro, é obra sua.

Sei, Senhor, que basta um gesto seu, um aceno discreto, e terei de deixar tudo, sem apelo, sem discussão. Tudo que tenho, tudo que sou, material ou espiritual, por menor que seja, sei que deve ser devolvido. Fui apenas guardião. Mas é aí que a alma tropeça: gostei tanto desta vida, Senhor, que procurei seguir seus mandamentos com afinco, quase obsessivamente. E sempre que reverenciava as estrelas — e que espetáculo, Senhor, que capricho! —, agradecia-lhe com o olhar fixo, curioso, para aquela abóbada tão vasta, tão cheia de mistério. Tinha certeza de que, em algum ponto desse infinito pontilhado, o Senhor me olhava com ternura.

Sou seu filho, como bilhões de outros — sei disso. Mas confesso: sinto-me o favorito, o queridinho do papai. Me perdoe a informalidade, mas não consigo evitar — é carinho, é gratidão. Por isso, Senhor, não quero obedecer quando vier a última chamada. Sempre fui obediente, cumpridor das ordens, aquele menino que não causa trabalho. Mas, nesse dia — o dia em que o Senhor me chamar —, talvez eu proteste, talvez faça birra, como garoto mimado que não quer largar os brinquedos, o sol, o mar, a lua, a vida. Tentarei, com um último gesto de rebeldia, desobedecer. Quero ficar mais um pouco, Senhor, mesmo que para isso precise morrer tentando.

É só um pedido, Senhor, simples, como quem pede mais cinco minutos de brincadeira antes de dormir. Sei que, no fim, sua vontade há de prevalecer. Mas enquanto posso, enquanto estamos a sós, agradeço, protesto, e amo — tudo com a mesma intensidade. Afinal, foi o Senhor quem me ensinou a sentir.

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