O filme Você Não Estava Aqui, dirigido por Ken Loach, é uma representação visceral da brutalidade imposta pela lógica neoliberal sobre o trabalho e a vida familiar na contemporaneidade. A narrativa acompanha Ricky Turner, um entregador autônomo que trabalha incessantes 14 horas diárias sob o jugo de algoritmos impiedosos, na promissora, mas ilusória, economia de plataformas digitais. Essa jornada exaustiva de Ricky oferece um retrato opressivo da uberização do trabalho, que remove de seus protagonistas quaisquer direitos laborais e os condena a uma precariedade cruel, onde a liberdade vendida não passa de uma cilada ideológica. Tal precarização ressoa profundamente no conceito marxista de exploração do trabalhador, que vê a apropriação do valor produzido pelo proletariado para a acumulação de capital da burguesia, aqui reinventada nas novas formas digitais e do controle algorítmico.
No olhar de Karl Marx, a situação de Ricky e sua família expressa o estranhamento e a desumanização inerentes ao modo capitalista de produção, reacendendo a crítica da exploração onde o trabalhador é reduzido a uma mera engrenagem em um sistema que jamais alcança a satisfação de suas necessidades humanas. A autonomia proclamada no discurso das plataformas é apenas fachada para aprofundar a alienação, pois Ricky, embora seja formalmente “seu próprio patrão”, está aprisionado a metas de produtividade e ritmos impostos por um controle invisível que o dilacera física e emocionalmente.
Byung-Chul Han, com sua análise da psicopolítica neoliberal, aprofunda essa leitura diagnosticando como o sujeito contemporâneo interioriza a ideologia da liberdade e do desempenho individual extremo, transformando-se em seu próprio explorador e opressor. No filme, esse efeito psíquico é palpável na compulsão de Ricky em manter uma jornada insustentável, na pressão para ser efetivo no empreendimento próprio, assim como no isolamento e no sofrimento da família. Han descreve essa condição como a passagem da disciplina para o desempenho, onde o sujeito não está mais sob uma força externa coercitiva, mas se autocobra maximizando sua produtividade até o esgotamento, o que o filme dramatiza na progressiva desagregação da convivência familiar e saúde mental dos personagens.
A sociologia líquida de Zygmunt Bauman também encontra sua expressão no caos relacional e existencial dos Turner. A metáfora do “caçador”, que Bauman propõe para a era contemporânea, traduz-se na incessante e angustiante corrida por sobrevivência, em que o tempo se torna um campo de batalha com decisões individuais que afastam o sentido coletivo e o tempo de convivência. A solidão, a fragmentação das relações, a ausência e o desgaste familiar no filme evidenciam o impacto da individualização exacerbada num mundo onde as redes de proteção social e as solidariedades coletivas se desfazem. Bauman e Han convergem ao revelar um sujeito dilacerado entre o imperativo de inovação constante e o consumo compulsivo da própria força de trabalho, que o filme encena de modo tocante e devastador.
Você Não Estava Aqui não é apenas uma denúncia política ou social; é um relato humano que nos convoca à reflexão sobre o valor do trabalho, a dignidade do ser humano e as transformações profundas e por vezes perversas do capitalismo global. O filme expõe com brutalidade a precariedade que se naturaliza e a falsa promessa de liberdade que encobre uma servidão moderna, buscando despertar a consciência crítica para uma realidade que, se não questionada, continuará a consumir vidas sob a lógica cruel da exploração contemporânea.
Assim, a obra de Ken Loach revela-se um documento poderoso que conecta Marx, Bauman e Han para mapear as novas formas de sofrimento e resistência na era da uberização — um convite urgente para repensar os fundamentos das relações sociais e laborais em nossa época.

