Por que a escrita de uma mulher cis (aquela cujo sexo biológico é mulher e se identifica como mulher) pode falar de uma mulher trans (aquela cujo sexo biológico é homem e se identifica como mulher)? Essa pergunta poderia ter muitas respostas: porque escrever é um exercício de liberdade, porque identidade de gênero é uma experiência individual e interna e sua construção tem relação com o psíquico, o social e o cultural, ou simplesmente porque são mulheres. Sim, são mulheres. A ideia de que “ser mulher” é uma experiência homogênea é um mito que precisa ser desconstruído.
A história de uma mulher trans pode ser diferente da história de mulher cis, mas a experiência vivida pode ser percebida da mesma forma. O compartilhamento de histórias mostra que sentimentos, potências e fraquezas fazem parte da experiência humana. Sem dúvida, mulheres trans trazem vivências únicas de transição, discriminação e violência, que provocam uma reação particular na forma como o movimento feminista aborda questões de interseccionalidade, tais como: raça, sexualidade e identidade de gênero. Por outro lado, mulheres cis, embora um pouco menos discriminadas, têm papel fundamental ao assumir que a luta pela igualdade, pela segurança e pelo direito de existir é comum para todas as mulheres, mesmo com realidades diferentes. Mulheres cis e mulheres trans compartilham a busca por dignidade, autonomia corporal e proteção contra violência de gênero.
A voz de uma mulher cis contribui de forma positiva para dar visibilidade à existência de mulheres trans ao ouvir e amplificar suas vozes sem domesticação de suas identidades. Conhecer e publicizar as lutas específicas enfrentadas por mulheres trans, como violência, acesso à saúde e ao reconhecimento legal é mais uma contribuição importante. Além disso, a voz de uma mulher cis ao “romper a bolha de iguais falando sobre os iguais” aumenta a visibilidade de mulheres trans e expande a compreensão da diversidade do que é ser mulher. Não se trata de julgar, trata-se de acolher.
O Brasil lidera o ranking dos países que mais matam pessoas trans e travestis. Os crimes são marcados por extrema violência e preconceito, nos quais as vítimas são, na sua maioria, mulheres trans, jovens, negras e nordestinas. Diante desse triste cenário, a visibilidade compartilhada pode potencializar a conscientização sobre a necessidade de proteção legal e respeito no cotidiano das mulheres trans. Também fortalece alianças entre diferentes setores da sociedade, promovendo políticas mais inclusivas.
A voz de uma mulher cis pode se juntar a voz das mulheres trans na luta por espaços seguros contra as agressões transfóbicas e misóginas. Assim, fica evidente que participação de mulheres cis na visibilidade de mulheres trans não é uma apropriação, mas uma aliança estratégica que amplia o alcance e a eficácia das ações por direitos iguais.
Visibilidade compartilhada não é soma de identidades, é ampliação de direitos. É ruptura de fronteiras. Quando mulheres cis elevam as vozes de mulheres trans, não há perda de dignidade, há ganho coletivo: políticas públicas mais justas, proteção real, e uma sociedade que aprende a ouvir a multiplicidade de experiências que compõem o que significa “ser mulher”. A sociedade que não incorpora essa pluralidade está condenada à repetição de estereótipos e à impotência diante de estruturas de violência e exclusão.

Autora:
Ana Marice Ladeia é médica cardiologista e coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Medicina e Saúde Humana, da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública. Também é autora da ficção “Nasci Odara”, finalista do Prêmio Kotter de Literatura.