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quinta-feira, 25 de setembro de 2025

A Era dos Especialistas de Tela

Nunca foi tão fácil saber de tudo. Nunca foi tão rápido também. Em poucas rolagens na timeline, qualquer pessoa encontra um vídeo explicando por que uma decisão judicial é “absurda”, um meme mostrando como as vacinas “funcionam de verdade” ou um influenciador comentando economia com a mesma leveza que recomenda uma dieta milagrosa. A internet, com sua força avassaladora de comunicação, promoveu não apenas o acesso à informação, mas um processo peculiar de simplificação e conveniência.

Não se trata de aprendizagem — ao menos não no sentido clássico de estudar, comparar fontes, questionar metodologias. O que vemos é a circulação de recortes de realidade, cuidadosamente moldados para caber em formatos de consumo rápido: vídeos de um minuto, frases de efeito, manchetes invejadas. São fragmentos que não apenas explicam mal a complexidade, mas moldam percepções, criando uma ilusão de entendimento.

Tomemos o campo do Direito como exemplo. Os processos judiciais são naturalmente complexos: envolvem códigos, súmulas, investigações, interpretações que se sobrepõem. Muitas vezes, até para os juristas formados, um julgamento é árduo de compreender em sua totalidade. Mas, no tribunal digital das redes sociais, nada disso importa. Uma pessoa que nunca abriu uma Constituição ou confundiu um habeas corpus com um alvará terá plena verdade de que a sentença “foi injusta”.

A metáfora do pombo no xadrez serve bem aqui: não sabemos as regras, a figura entra, derrubamos as peças, faz sujeira no tabuleiro e, ainda assim, sai de peito estufado como se tivesse vencido a partida. A diferença é que, hoje, essa cena não fica restrita ao ridículo de um jogo improvisado. O pombo, nas redes sociais, encontra plateia, aplausos, compartilhamentos e curtidas. Ele transforma ignorância em espetáculo e, pior, em fonte de convencimento.

Esse aspecto não se restringe ao direito. A pandemia mostrada como a “cátedra digital” se ampliou ao campo da ciência médica. Virologistas improvisados ​​explicavam gráficos, contestavam laboratórios, distribuíam desconfiança embalada em frases de efeito. O que deveria ser técnico virou palco de opinião. A opinião, embalada na estética da certeza, passou a valer tanto quanto a evidência científica.

Há, claro, uma raiz social relevante nesse processo: a desconfiança generalizada nas instituições e nos especialistas. O cidadão médio, cansado de injustiças, burocracias e incompreensões, encontra nas redes uma promessa de autonomia — “agora eu interpreto por conta própria, não deixo que me enganem”. Isso poderia, em tese, ser um exercício saudável de crítica e cidadania. Mas quando se troca análise por achismo, estudo por meme, a consequência é o achatamento completo da realidade.

A internet democratizou a fala, mas também nivelou, para baixo, o filtro do conhecimento. Saber tornou-se parecer saber. O resultado disso é uma esfera pública cheia de certezas simples sobre assuntos que exigem complexidade e paciência. Juristas, cientistas, jornalistas, todos acabam disputando espaço com o barulho das condenações instantâneas. E, entre o estudo de quem se dedica anos a entender um tema e a resposta de 15 segundos de um “criador de conteúdo”, a opção do público muitas vezes se volta para o que se conforta em vez do que explica.

A era digital nos deu muitas conquistas — a velocidade da informação, o acesso irrestrito, a possibilidade de voz. Mas também nos trouxe um paradoxo: vivemos rodeados de especialistas de tela, condenados, inflamados, certos, mas raramente conscientes da própria ignorância. O pombo segue ganhando partidas de xadrez na internet, sempre aplaudido, sempre certo, sempre imbatível no reino das simplificações.

Manuel Flavio Saiol Pacheco
Manuel Flavio Saiol Pacheco
Doutorando e Sociologia e Direito pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Mestre em Justiça e Segurança pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Especialista em Desenvolvimento Territorial pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).. Possui ainda especializações em Direito Tributário, Direito Constitucional, Direito Administrativo, Docência Jurídica, Docência de Antropologia, Sociologia Política, Ciência Política, Teologia e Cultura e Gestão Pública e Projetos. Graduado em Direito pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Advogado, Presidente da Comissão de Segurança Pública da 14º Subseção da OAB/RJ, Servidor Público.

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