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quarta-feira, 24 de julho de 2024

GENTE CÍNICA

Nas rupturas, incrimina-se o outro por cinismo. Nas discussões, ser cínico é sempre péssimo e, claro, a forma de ofender e ser ofendido. Afinal, o que é o cinismo? Antes de refletir sobre, deixo, porém, uma afirmação: tornamo-nos cínicos com o tempo. É um componente do conceito; antecipei-o para que ninguém se sinta livre de ser e estar cínico. Se o somos em diferentes graus, assim é nosso amor, nossa autorreferência, nossa arte e, obviamente, essa seria nossa natureza. Amamos cinicamente e vivemos cinicamente.

Por primeiro, evoco a defesa. Ver e sentir o tempo todo cansa, exaure o que quer que tenhamos por energia psíquica. Note: numa reunião com três ou quatro pessoas, há o mesmo número de vidas ali. Vidas com problemas, felicidades, desejos, recalques, ansiedades, histórias. Subjetivar essa maré inteira implicaria, primeiramente, uma capacidade sobre-humana de simbolizar e desvincular o outro do eu. Caso, ainda assim, existisse esse übermensch, o tempo físico – externo, Chronos – impediria subjetivar a toda hora e existir. É uma impossibilidade, portanto, não ser cínico em graus e momentos distintos.

É, pois, uma estratégia de deslegitimação. O meu arcabouço pode deslegitimar o seu quando o vejo a partir de um checklist de pré-requisitos para ser o que diz ser. A minha onipotência cria ou se apropria maldosamente de uma lista de critérios e parâmetros como lente para lhe enxergar. O cinismo é o modus operandi de tantas opressões que conhecemos, tais quais racismo, homotransfobia, misoginia, ódio à religião alheia e assim por diante.

Como terceiro ponto, cinismo é próprio da infantilidade. Saiba a infantilidade, embora comum e esperada na infância, é um mecanismo primitivo que persiste na maturidade. O que não se conhece ou não se pode conhecer por enquanto, porque aprender, amar, odiar, gozar, querer, desejar, têm seus próprios tempos, a saída mais rápida, mais barata e mais pobre em recursos discursivos e psíquicos é o cinismo.

O que é, então, o cinismo? É deixar de subjetivar, não ver com propósito ou por mera imposição do tempo, o sujeito em sua subjetividade ampla. É coisificar, objetificar. Note que “deixar de subjetivar” – ou “não subjetivar” – parece dizer muito mais do que,

simplesmente, “objetificar”. Quando eu vejo um objeto ao invés de uma pessoa significa que passei pelo processo de deslegitimar o outro por meio de um checklist que me faz sentido, mas não é universal. O cinismo é a forma de reinar no próprio mundo e tem por efeito colateral a impressão no discurso.

***

  • (1) Faço uma nota essencial: objeto não é desprovido de alma, mas, sim, de autonomia. Considere os mecanismos de projeção e veja, principalmente no capitalismo tardio, o objeto ter uma alma com forma (não amorfa, conceitualmente), previsível e desejável. Quando se transpõe “objeto” como conceito à pessoa, castra-se a autonomia de existir e de reivindicar seu ser. Por essa razão, prefiro “deixar de subjetivar” em vez de “objetificar”, pois diz mais e não reduz o conceito.
  • (2) Esclareço o uso de übermensch e Chronos. O primeiro, obviamente, é uma menção ao super homem de Nietzche; na verdade, é uma negação “não übermensch” se referindo a não ser onipotente o indivíduo. Ele pode até querer tudo, mas não é possível o ter. Chronos tem um uso pensado mais interessante. O titã castra seu pai, invertendo a estrutura de poder: o filho, inevitavelmente, como nos mitos, para dar continuidade à existência universal, destrona seu pai, negando-lhe a existência. O tempo é soberano e, a cabo, inverte a ordem lógica das relações e vê seu fim.
  • (3) Não se pode deixar de estabelecer uma relação entre o cínico e o Outro. Deixar de subjetivar não implica numa austeridade de afeto, mas, sim, na afetividade unívoca, inquestionável, caracterizadora do Outro. As pontes estabelecidas, à Merleau-Ponty, desconsideram a autonomia de existir e as controvérsias irresolvíveis próprias da existência humana. O cínico é resolutivo, prático, rápido no gatilho. Parece-me o comportamento humano quase nunca ser definido ou enfrentado com honestidade em pouco tempo. O cinismo é um comportamento lesa natureza inevitável. Veja, assim, a pulsão de morte como fundamental, vez que destruir é inevitável e os recursos materiais e imateriais são finitos (vide nota 2).

Autor:

Arthur Dartagnan Chaves dos Santos

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