Nos últimos anos, uma tendência inusitada tem ganhado espaço nas redes sociais e nas ruas: adultos que cuidam de bonecas hiper-realistas, conhecidas como bebês reborn, como se fossem filhos de verdade. Essas bonecas, confeccionadas com materiais como vinil e silicone, imitam com impressionante fidelidade recém-nascidos, com detalhes que vão desde veias aparentes até o peso semelhante ao de um bebê real.
Há relatos de pessoas levando essas bonecas a hospitais, simulando situações de emergência, e até ocupando assentos preferenciais em transportes públicos, alegando estarem com uma criança no colo. O mais absurdo? Algumas chegam a exigir prioridade no atendimento médico ou espaço em filas, como se carregar um boneco realista fosse equivalente a cuidar de uma vida humana. Isso não é apenas bizarro, é um desrespeito com quem, de fato, precisa desses direitos: mães reais, idosos, pessoas com deficiência ou mobilidade reduzida.
O uso dos bebês reborn, em um primeiro momento, foi associado a contextos terapêuticos, como o luto gestacional ou a infertilidade. Em casos específicos e sob acompanhamento profissional, podem até ter valor simbólico e emocional. Mas o que estamos vendo atualmente vai além. Trata-se de adultos emocionalmente saudáveis que escolhem viver uma fantasia prolongada, transferindo afeto, tempo e até responsabilidades reais a objetos inanimados. E isso levanta um sinal de alerta.
A psicóloga Leticia de Oliveira, em entrevista à Caras, afirma que a humanização exagerada de bonecos como filhos revela “uma carência emocional significativa e uma possível frustração existencial”. Já o psicanalista Eduardo Casarotto aponta para uma espécie de neurose: a substituição simbólica de vínculos afetivos reais por um objeto que simula, mas não exige, convivência ou conflito. É um tipo de maternidade sem choro, sem fraldas, sem escola idealizada, controlada, fictícia.
Mas o problema não é só psicológico. Quando alguém exige um direito que deveria ser voltado à proteção de pessoas reais, estamos falando de um desvio social. A empatia, o respeito e o bom senso não podem ser substituídos por delírios individuais. Se cada pessoa começasse a exigir reconhecimento social com base em suas fantasias, como viveríamos em comunidade?
O apego aos bebês reborn também escancara outra face da nossa sociedade: a crescente dificuldade de lidar com a realidade. Em tempos de redes sociais, filtros e versões editadas da vida, o boneco perfeito, que nunca chora nem desobedece, vira o companheiro ideal. Mas a vida de verdade com imperfeições, dores e surpresas é insubstituível. E fugir dela, ainda que em nome do afeto, não resolve nada.
Não se trata de julgar o gosto ou o hobby de ninguém. Mas há uma diferença gritante entre colecionar bonecas e agir como se elas fossem seres humanos. O espaço público exige responsabilidade. Assentos preferenciais, emergências hospitalares e políticas de inclusão são conquistas importantes e não podem ser banalizadas por um simulacro.
Em tempos em que tudo pode virar performance, é fundamental reforçar limites. Bonecos não são bebês. E a sociedade precisa continuar sendo construída com base em vínculos reais, não em ilusões emocionais.