Era uma tarde, era em um cruzamento da rua com a pressa, ele apareceu. Magro, suado, com a camisa suja de urgência. Apontou o revólver – ou algo que parecia um — e pediu o celular. Pediu, não: tomou. E correu. Era uma vez um celular. Era uma vez um menino. Foi então que começou a avalanche ordinária em minha cabeça e em meu peito, a tarde sumiu no tempo. Era tudo. Era medo, era raiva, era nojo, era ódio, ódio daquele menino. Desgraçado. Queria gritar.
Voltei para casa sufocada. Passei a noite em claro, remoendo a cena. Em cada canto da memória, ele. A expressão dura, os olhos acesos de desespero. Desejei justiça. Desejei vingança. Que fosse pego, que apanhasse, que pagasse. Eu queria o mundo limpando minha dor com a punição dele.
No dia seguinte, saí para comprar pão e o mundo parou. Um aglomerado cercava o início da viela. Um corpo coberto por um lençol, sangue escorrendo até o meio-fio. A mão descoberta, fina, jovem. A sandália arrebentada, como quem correu. Alguém sussurrou: “Tentou roubar de novo”. Me aproximei, tremendo. E vi. Era ele. O menino. O mesmo.
Morto.
Não consegui me mover. Nem gritar. Só fiquei ali, diante de um corpo furado de bala, a bala que ele teria, se tivesse chance, colocado em mim, agora apodreceria nele. Ontem, era raiva — e agora era só silêncio. Um menino que não teve tempo de mudar. Um menino que teve a vida encurtada por um sistema que o empurrou para a beira.
E então o ódio virou outra coisa. Virou vergonha. Culpa. Despertou perguntas que antes eu não queria fazer. Quem deu a arma? Quem o ensinou a roubar? Quem se beneficia com isso tudo, enquanto os meninos morrem nas calçadas e os chefes se escondem nas mansões? Quem lucra com o medo que sentimos e com o sangue que mancha a rua?
O problema não era ele. O problema era quem o moldou assim. O crime organizado, os senhores invisíveis do tráfico, os que transformam garotos em soldados descartáveis. Que lavam as mãos e seguem mandando, enquanto os meninos caem, um a um, nas estatísticas que ninguém lê com atenção.
Essas organizações não apenas se alimentam da miséria — elas a perpetuam. Enquanto meninos como aquele morrem aos montes, os chefes do crime enriquecem, protegidos por redes de corrupção que sobem muito além dos morros. E onde está o Estado? Quase sempre ausente.
Não há escola, não há lazer, não há assistência real. Só sobra o convite fácil do dinheiro rápido, da arma na cintura, do respeito imposto pelo medo. A sociedade fecha os olhos — até ser assaltada. E então clama por mais bala, mais polícia, mais morte. É um ciclo que alimentamos
com a nossa indiferença e com a ilusão de que o problema morre com o menino. Mas o problema está muito acima, muito atrás, muito antes. E quem manda mesmo, nunca sangra.
E nós, do lado de cá da grade invisível, seguimos apontando dedos. Chamamos de “bandido” para não ter que dizer “criança perdida”. Preferimos o medo ao invés da empatia, porque é mais fácil dormir acreditando que merecemos segurança do que admitir que falhamos com os nossos. A cada menino que cai, há uma sociedade inteira que escolheu não estender a mão. Fingimos que esses jovens nascem maus, quando na verdade nascem ignorados. E enquanto gritamos por justiça com a boca cheia de privilégios, esquecemos que quem mais morre nessa guerra é quem menos teve escolha.
Roubaram meu celular, sim. Mas o que dói é saber que roubaram um menino de si mesmo muito antes disso.
Autora:
Ana Carvalio