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quarta-feira, 24 de julho de 2024

Um indesejado

Eustáquio sempre foi um indesejado. Volvendo ora o olhar para um passado escurecido, penso, na verdade, que não poderia ser diferente a agra realidade dos fatos. A indesejabilidade do ser é uma filosofia ontológica curiosa que perpassa relações de muitas naturezas. Podem ser indesejados objetos, animais, momentos ou mesmo pessoas…

Com quarenta e cinco quilos e um metro e setenta e sete, o ser representava uma figura ridícula -e que, observando atentamente, bem sabia ser ridícula-.  Seus olhos, seu nariz e até sua boca; todo o seu corpo era uma forma esguia e curvilínea que sempre parecia prestes a rebentar em fragmentos e espalhar-se pelo chão. Era um ser estranho de óculos fundos e voz atarracada num timbre impronunciável, cuja escuta provocava, nos ouvidos mais sensíveis, uma ânsia curiosa e um embaraço indisfarçável.

Eustáquio trabalhava como escrivão num escritório carcomido pelos anos cerca de trinta metros após o Beco do Candeeiro, um retiro silenciosamente escuro, onde outros mistérios do indesejável dormiam à luz do sol para florescer ante a ascensão do luar. O prédio era baixo e antigo, com um chão marrom de aspecto sujo e janelas entrecortadas pela imundice por onde poucos raios de sol se filtravam. As paredes do lugar eram grossas e de aspecto rígido em cuja pintura desbotada pelos anos e comida pelo mofo se refletia a luz alaranjada das lâmpadas que ali brilhavam. Todo o lugar era uma relíquia marginal de um tempo olvidado. Crescera a cidade, mas seu bairro não prosperara.

Todos os dias, aquele homenzinho cruzava a cidade saindo muito cedo de seu tugúrio alugado na Rua das Hortaliças e tomava o coletivo até a estação, de onde caminhava até o escritório.

O senhor Von Klark era um patrão tão antigo quanto o bairro e poucas palavras trocava com os outros funcionários.

A senhorita Lenk, uma menina de seus dezoito anos de cabelos desgrenhados sempre era a primeira a chegar. Pontualmente, abria o prédio com a chave que conquistara com seu tempo de dedicação e abria todas as fenestras do retiro. Depois dela, vinha o sr. Gonzales e Eustáquio.

De segunda a sexta, o homem trabalhava das seis da manhã às oito da noite, quando volvia para sua casa.  Sempre jantava ovos e pão, como um ritual que não se deveria questionar.

O casarão onde morava era compartido em diversos quartinhos de teto baixo e habitações asfixiantes. Com ele, ainda viviam mais cerca de dez pessoas em outros cubículos. Porém, esse era um fato que o homem ignorava.

Sua existência era silenciosa até os limites do tolerável. Não se escutava qualquer melodia vinda de seu dormitório, nem tampouco qualquer som além dos estalos de seus interruptores acendendo e apagando as luzes antes de dormir e ao acordar. Facilmente, na verdade, se poderia supor que o 402 a ninguém abrigava e que aquele ser fantasmagórico de postura encurvada fora apenas um vulto que alguma alma fortuitamente vira entre as brumas do entardecer e que, ante uma mirada mais apurada, se perceberia não ser mais do que uma ilusão fantasiosa de jogos de luz.

Ninguém conhecia o passado ignorado do escrivão, de sorte que os que o conheciam murmuravam curiosas especulações sobre uma orfandade velada e estranhos acontecimentos ligados a uma criança encontrada à beira do rio de Kuiapoá abandonada pela mãe, que ali se suicidara.

É fato, no entanto, que o Indesejado mantinha para si esse segredo, de modo que, em alguma medida, pudesse permanecer singularmente incógnito entre a curiosidade acerca de quem era e as brumas de seu silêncio.

Eu próprio o vi certa vez entre caminhos serpenteantes do centro da cidade e quase duvidei que pudesse haver um ser humano com tão triste aspecto. Todo ele era decadência e fragilidade. Não lhe falei uma palavra, mas, com um sutil encostar de ombros na passagem estreita, notei sua indizível estranheza e um desejo, que não pude diferir se era meu ou dele, de desaparecer e não mais mirar a incognoscível diferença daquele estranho indesejado.

Autoria:

Ariel Von Ocker (nome social de Gabriel Felipe Montes Lima) é escritor, psicanalista, poliglota e acadêmico de Letras e História. Também já trabalhou no teatro como dramaturgo e ator. Com catorze anos escreveu seu primeiro romance e por anos seguiu escrevendo sem publicar, até que em 2021 se torna colunista no maior blog sobre psicanálise em língua portuguesa com o texto de estreia Representações Sobre o Feminino: Um Olhar Histórico. Atualmente se dedica à formação acadêmica e à divulgação da arte e do conhecimento.

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