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quinta-feira, 21 de novembro de 2024

Está na moda cancelar, mas quem tem coragem de se cancelar?

Neste palco eterno que é o mundo, adentramos agitados pela necessidade natural de viver, ansiosos ocasionados pela mudança brusca, ensanguentados pelo amor divino de mainha, nus como os animais mais espertos que nós, mas aos poucos vestimos as roupas, ou melhor, nos vestem com roupas que escondem nosso ser cotidiano. 

Se cresce fingindo ser quem não é e somente pela singularidade de atuar nas brincadeiras. Digitamos e arrastamos com os dedos, já na tenra idade, a telinha quadrada com a luz do celular adivinhando o futuro míope. Engatinhando, nos espantamos com o espelho e com uma outra Maria que também existe e com um outro João que também existe. Cresce mais um pouco, aborrece, se revolta, sai por aí a namorar, fica em casa de cara emburrada e feliz no mesmo instante ao abrir uma porta de geladeira, meio vazia ou meio cheia, quando tem e quando não tem simplesmente inventa. Sabendo da burrice de se resumir e se imaginar pequeno ao ponto de caber em um parágrafo, numa tarefa qualquer de redação na escola.   

Aí envelhece, começa a trabalhar fora ou dentro de casa, sempre usando uma foto falsa e falando por perfis que nem existem na realidade antiga e distante, aquela na qual nasceu. Aos domingos vai à igreja ou não. Dessa rotina tira apenas o lado mais negativo, se isola, se frustra com os limites que a vida lhe impôs e que aceita calado, para dentro de si mesmo, engolindo repetidamente as mesmas ladainhas e as mesmas desculpas para fugir de ser quem se quer ser ou fugir de ser quem se é. Constrói para si uma relação ilusória e comparativa, descendo a barra de rolagem do feed, bisbilhotando a vida alheia que falsamente é mais feliz que a sua. Daí pra frente é um poço sem fundo, sem rumo e sem virtude. O medo de buscar, de pesquisar coisas diferentes a fazer. As possibilidades do campo infinito do www ficam para trás, pois está alocado apenas em alguns endereços neoliberais, mal-intencionados e pretensamente autointitulados “redes sociais”. O maior roubo a olho nu que a humanidade já viveu, pois, a rede social sempre existiu, agora só tem o acréscimo do virtual. Pois é assim mesmo que a virtualidade nova de ser alguém em ataque a outro alguém se torna essa válvula de escape.

O tal do Cancelamento que não anda só, vem sempre acompanhado de muita hipocrisia. As máscaras caem ao final do primeiro ato, um outro alguém mais íntimo esqueceu de avisar. Na verdade, ele só se deixou escapar por palavras falhas. Elas que nos seguem e saem sem querer, mas às vezes por querer se amostrar. Dessa vez e em muitas outras, mostra esse profundo desejo de apontar os mínimos erros alheios. Às vezes nem isso é. Por fim, demonstra apenas uma impossibilidade de dizer cara a cara aquilo que pesa no âmago, por isso mesmo transborda corajosamente pelas páginas, pelos comentários e pelas deep webs da vida. 

É a ética da estética que autoriza, impera e dita essa verdade absoluta. Corpos e corpas que não seguem a maré, são arrastades pelas ondas trevosas desse mal do século. Como isso começou? Talvez com o que chamamos por exclusão, violência, bullying, linchamento, holocausto. É mais fácil falar que eu sou justo, síntese de perfeição, o alecrim dourado, a fada sensata, de tal modo que me ponho no pedestal de onde posso julgar as atitudes de outras pessoas, como se fosse uma coisa simples. A internet é vista como uma terra sem lei, sem justiça. Pelo contrário, a justiça é feita com as próprias mãos. É só alguém criar um critério de distinção comportamental, sem levar em consideração outros fatores, contextos e marcações sociais que são infinitamente mais aparentes, apenas pelo desejo de massacrar alguma figura pública. Não por acaso, ultimamente, elas são figurinhas carimbadas pelo racismo, machismo, lgbtfobia, capacitismo, elitismo e tantos outros ismos.

Na dicotomia criada entre um Eu e um Outro, como dois lados opostos, essa coisa nojenta de gritar e impor uma suposta credibilidade desenfreada, aparece. Não segue a ordem, é progresso. Acho que não. Não segue o progresso, é ordem. Também não deu certo dessa forma. Polarizar pode ser a resposta. Energizar os polos e dizer bem assim mesmo, como se fosse uma coisa natural. Embora a humanidade nunca seja natural porque ela é construção. Uma construção que não começa e nem termina, ela apenas está dispersa. Nessa forma verbal do presente na corporeidade. O mundo não nos abraça, nós é que abraçamos ele em nossa efemeridade. Ele esteve lá quando chegamos e vai permanecer lá, talvez não do mesmo jeito, quando nós partirmos. 

Mas tenho ainda a teimosia em acreditar que um dia a internet será mais do que uma realidade, e sim um instrumento político por excelência. Apesar do fato das plataformas terem elencado as vozes dos excluídos e ameaçadoramente alargarem as barreiras duras da democracia, ainda assim, falta a falta nossa de maturidade. Querer ser menos, para melhorar mais. Sem essa conversa fiada de humildade. Não, nada disso. Humildade molhada demais se torna umidade e isso só é bom para algumas plantas específicas. Nos projetos políticos de aturação, o desenho da planta dessa casa é menos hermético. Não, nós somos um bicho mais complicado, complexo, divergente e social. Por isso a necessidade de lembrar que o corpo é marcado por diferenças.

A luta pela igualdade foi durante muito tempo o carro chefe, mas hoje a noção de equidade é muito mais evidente diante do nosso tempo. Diferentes, mas buscando a equidade no jogo político. As mesmas oportunidades de decisões e escolhas, no intuito de no meio digital poder ter poder. A maturidade de lidar com uma opinião que se diverge da minha e a mesma maturidade de não aceitar que a intolerância ganhe espaço. Intolerante somente no caso da intolerância de certas pessoas contra quem têm identidades diferentes. A questão é saber separar uma polarização partidária de um ato de violência. Separar o crime de uma mera lacração. Separar a militância de uma mera opinião. 

Talvez por essa mesma razão seja tão difícil lidar com as mudanças. Como é possível que estejamos em um estágio evolutivo e de maturidade política, para de repente, termos um acesso explosivo de informações diante um trem que não para, não quebra, não se expande para além dos limites da linha ferroviária. E ainda bem que isso não acontece, pois os vagões iriam desencarrilhar. Preso mesmo pelo coletivo, pois não me interessa somente o interior, mas este em conjunto com o exterior e guiados juntos pela ideia da solidariedade e pela pluralidade de subjetividades que nos atravessam nas sociedades atuais. Ninguém é feliz sozinho porque somos humanidade e a ela, prescreve o social, a tolerância, a fraternidade, etc. Em suma, vivemos essa bagunça organizada entre gerações diversificadas para além da Z ou Millennials, sem fim aparente mais pela possibilidade de preguiça do que pela impossibilidade de arrumar. 

Por isso que a internet é um instrumento político que não tem controle e não pode ter controle. Ela é formada por cada um e por todos ao mesmo tempo. Talvez isso explique o porquê do problema nunca ter sido sobre o acesso, mas sobre o uso. Os usuários são os verdadeiros culpados e, também, as vítimas. Esse deslumbramento diante a tecnologia. A animalidade e a selvageria que faz parte de nós diante o advento de invenções colossais. Só que, é necessário acessarmos exatamente essa selvageria nata, anti-civilizatória diante os predadores. Porque a tecnologia digital é política, mas é técnica também. É uma arma, uma força que quem a domina, domina o outro. Foi assim com o Homo sapiens sapiens e seu predomínio com a tecnologia do fogo. Haverá um futuro em que o “Homem que sabe que não sabe de nada” irá surgir e aí, se estivermos na subespécie correta, teremos realmente o domínio, pelo menos parcial, da web.

Por hora, esses grandes piratas modernos, multi-bilionários, só querem o caos e só trabalham para e pelo caos. São humanos também e ainda pior que os pequenos usuários zumbis, eles são verdadeiros demônios que lucram com toda uma indústria digital nesse show de horrores que se tornou as redes sociais virtuais. Se alguém me faz acreditar que aquilo que uso é uma coisa inocente e que não há mal algum envolvido com aquele instrumento, eu me volto contra a pessoa que me fez acreditar nessa mentira. Faz parte de nossa consciência coletiva o deslocamento da energia do cancelamento na direção dos autores dessa “cultura” autoritária. Começando por dentro de si e depois pela maneira de enxergar o mundo.

“Ataque e defesa”, “exterior e interior”, escritos intencionalmente em paralelo, mas interconectados nas relações sociais, esses princípios são básicos e necessários a qualquer vida humana que ouse existir na distopia real dos anos pós 2000.

Autor:

Robson José de Oliveira Brito

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