22.3 C
São Paulo
sexta-feira, 14 de março de 2025

A polêmica do “Eu ainda estou aqui”

Não existe o jeito certo de fazer a coisa errada. Por isso, quem faz besteiras costuma produzir  narrativas críveis e as repete à exaustão para ver se cola. Assim como os políticos, quando alguém pisa na bola, nega na cara dura, mesmo contra todas as evidências.

  • Cadê você? – pergunta a esposa ao telefone.
  • Eu ainda estou aqui. Chegarei tarde. Plantão cheio de ocorrências.
  • E essa música melosa aí ao fundo?
  • É o delegado Haroldo. Engravidou a diarista da amante, a esposa descobriu, ele perdeu as duas e passou o dia inteiro na fossa, ouvindo música brega.
  • Bem feito. Ele é um cafajeste. Péssima influência.

Sidicleide, vendedora da Natura, já sabia a resposta. Toda quarta-feira, o marido Ivo Usb, Cabo PM, chega em casa após meia noite por causa de “excesso de trabalho”, plantão complicado ou troca de turno. Ela telefona só para confirmar e depois vai ver o amado Silas Kow. Ester Elisa, mulher de Silas, é auxiliar de enfermagem e seu turno termina às 24h. Os encontros acontecem às quartas-feiras, na casa do amante. É mais econômico.

Ivo Usb e Sidicleide, têm acordo informal de união estável no regime semiaberto: passam o dia fora, ninguém pergunta onde o outro esteve e dormem em casa. Nada de visita íntima no imóvel do casal.

Mas naquela quarta-feira, tudo saiu do controle. Ester Elisa mudou para o turno da noite e ficará em casa até 23h. Silas sugeriu encontro na casa de Sidicleide, que concordou, lembrando que ele tem de cair fora antes do marido ciumento chegar da delegacia. A diarista não foi trabalhar e ela precisa por ordem na casa, onde também mora o jovem cunhado.

  • Júnior, você está há 40 minutos no banheiro!
  • Eu ainda estou aqui! Mas só fumando um baseado e vendo pornô no celular.
  • Ah, bom! Pensei que estava no banho. Luz e água estão caras. Vê se arruma uma namorada ou namorado, sei lá. Agora, sai daí porque eu preciso limpar o banheiro. 

Júnior pediu grana emprestada e foi ver um show de striptease. Sidicleide arrumou a casa e vestiu o robe lilás novinho e sensual para esperar Silas.

A coisa também melou para o Cabo USB. Ele mandou mensagem para Ema Thomas, massagista e peguete oficial: Cadê você? Eu ainda estou aqui! Só então viu que Ema tinha escrito avisando que viajou para ver a mãe. USB ligou para a peguete reserva, mas Eva Gaba não atendeu. Sem “trabalho extra”, foi para casa cedo e deixou o carro na rua, pois um Fiat Pálio bloqueava a garagem.

  • Amor, cheguei! – gritou. Um palhaço estacionou no recuo da garagem. Vou tomar cerveja, fumar um cigarrinho e já subo.

Pânico no andar de cima! Sidicleide mandou Silas Kow pegar as roupas e entrar no closet. Trancou a porta, pôs a chave sob a mesinha de cabeceira e fingiu dormir. Quando USB entrou no quarto, ela lembrou que os sapatos do Silas estavam sob a cama, no lado do marido.

USB, elegantemente, deitou sem tirar a roupa, tomar banho ou escovar os dentes. A forte mistura de fragrâncias de pum, chulé e bafo de cerveja com notas de tabaco invadiu o quarto, mas ela não queria confusão e fingiu sono profundo.

O closet não tem banheiro integrado e o vitrô é pequeno. Com a porta trancada, Silas Kow deitou-se no carpete e esperou que USB pegasse no sono e Sidicleide o libertasse, mas nada disso aconteceu.

De madrugada, ouviu o ruído da descarga e USB reclamar que não tinha papel higiênico. Precisando fazer o número dois, Silas usou um pé de meia para armazenar o resíduo orgânico e outro para a higiene precária. Jogou tudo pelo vitrô e dormiu.

Sidicleide levantou cedo, vestiu a mesma roupa, saiu de mansinho e foi visitar clientes. Ivo USB acordou, tentou calçar o sapato, mas não serviu. Reparou que não era o seu sapato e sentiu cheiro ruim. Pensou na falta de banho, mas o odor vinha do closet. Na mesinha de cabeceira, viu o chaveiro da Fiat. Silas Kow estava com a respiração ofegante, tenso e suando. 

Meia hora depois, que pareceu uma eternidade, Silas ouviu a chave entrando na fechadura do closet e se encolheu atrás dos vestidos, preparando-se para o pior, pois o Cabo é nervoso e tem arma de fogo. USB deixou no piso os sapatos do Silas e uma bandeja com água, café e papel higiênico. 

  • Você deu sorte – disse USB. Carpete macio e quentinho. Certa vez passei a noite no closet da Ema Thomas, piso frio de cerâmica. Fiquei resfriado e nem podia espirrar. Foi tenso. Agora, cai fora logo!
  • Obrigado – murmurou Silas em volume inaudível.

USB ficou bravo com a mulher porque o acordo de regime semiaberto não permite “trazer trabalho para casa”. É inaceitável e ele tomou providências enérgicas: multou o Fiat Palio por estacionar em local proibido. Mais tarde, USB se deu conta de que trancou a porta do closet ao sair. Lá dentro, Silas Kow repetia: Ô de casa. Eu ainda estou aqui!

Laerte Temple
Laerte Temple
Administrador, advogado, mestre, doutor, professor universitário. Autor de Humor na Quarentena (Kindle) e Todos a Bordo (Kindle). Crônicas de humor toda sexta-feira, às 10h.

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui

Leia mais

Jogo de azar não tem lógica

Filosofia de Bar, Fatos e Narrativas

Inflação sobe, popularidade cai.

Eleição e Posse na CVM

Patrocínio